'UM PARA O CAMINHO' DE HAROLD PINTER: UTILIZANDO O
TEATRO COMO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO
Introdução
Um
dos grandes problemas enfrentados pelos educadores na contemporaneidade é a
falta de interesse de muitos alunos. Assim, um dos grandes desafios encontrados
pelos professores é a dificuldade de despertar o interesse dos alunos. Tornar
uma aula atrativa e instrutiva. Como um dos conteúdos básicos do currículo
escolar, no que diz respeito ao ensino da História, é o tema da ditadura nós
escolhemos como instrumento pedagógico uma peça de teatro do dramaturgo inglês
Harold Pinter, vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2005.
A
escolha desta peça se deve a três fatores. Em primeiro lugar, as motivações que
levaram o dramaturgo a escrevê-la. Ao explicar aos alunos o que levou Pinter a
escrever ‘Um para o caminho’ o professor pode promover uma discussão sobre a
importância do engajamento políticos e das diferentes formas que o indivíduo
pode atuar politicamente dentro da sociedade. Em segundo lugar, o conteúdo do
texto pode ajudar o aluno a perceber como a violência e a opressão de um regime
ditatorial podem se manifestar de diferentes formas (física, psicológica e
emocional). Nesse sentido o a leitura do texto seria um complemento para o
material didático.
Por
fim, como é uma peça pequena, com um cenário muito simples e com poucos
personagens ela pode ser encenada com certa facilidade em algum evento escolar.
Acredito que, mesmo que muitos não queiram participar, dependendo do tamanho
das turmas, o professor irá conseguir, com alguma facilidade, encontrar alunos
que ficarão animados diante da possibilidade de participar de uma peça. Além
disso, é uma forma de se fazer da escola um lugar prazeroso para o aluno.
Iremos
então apresentar o autor e a peça para, na sequência, discutir alguns pontos do
texto que poderiam ser trabalhados. Além disso, não se pode esquecer que o
professor de história não precisa trabalhar sozinho. Ele poderia realizar um
trabalho conjunto com o de literatura ou de inglês, que também poderiam
utilizar o texto em suas aulas. Afinal, seria interessante apresentar a obra de
um dramaturgo que é pouco conhecido no Brasil.
O escritor e sua obra
Harold
Pinter, vencedor do Nobel de Literatura de 2005, nasceu em 1930, na cidade de
Londres. Ele foi poeta, romancista, roteirista, ator, diretor e é considerado
um dos maiores dramaturgos do século XX. Ao longo de sua carreira, Pinter
abordou diferentes assuntos em suas peças, roteiros, poemas e em sua ficção; sendo
que os temas políticos passaram a ter preponderância a partir de determinado
momento.
‘Um para o caminho’ é uma peça política, em um ato, que
ele escreveu numa única noite. Segundo a esposa de Pinter a origem da peça pode
ser remetida a 1983 quando, após a leitura do livro ‘Prisoner Without a Name, Cell Without a Number’ de Jacobo
Timerman, o dramaturgo pensou pela primeira vez em escrever sobre o assunto.
Contudo, ela só veio a ser escrita em janeiro de 1984, após uma conversa que
teve com duas jovens turcas que ele havia conhecido em uma festa de aniversário.
O título da peça refere-se a uma frase utilizada por Nicolas em diferentes
momentos (PINTER, 2002, p. 180, 182, etc.) que, segundo Ubiratan Paiva (2014,
p. 73), tem o sentido de saideira:
“Além
de interrogatórios e torturas, há uma atividade reiteradamente repetida por
Nicolas durante todo o tempo (...). Trata-se do fato de que o interrogador
serve uísque para si sete vezes e ainda mais uma dose para Victor quando diz
que ele pode ir embora: a saideira de que fala o título”.
Ao
conversar sobre a tortura nas prisões turcas elas disseram, com total
indiferença, que os prisioneiros deviam ser comunistas, como se isso fosse uma
justificativa para o uso da violência. Indignado com essa indiferença, Pinter a
escreveu como uma forma de expor sua revolta. Foi o primeiro texto escrito após
um período de bloqueio, que durou três anos, e deu início à fase política de
sua produção. ‘Um para
o caminho’ trata dos interrogatórios sofridos pelos diferentes membros de uma
família numa prisão por, de alguma forma, se oporem ao regime.
Primeiramente
interroga Victor, o que nos permite saber que sua esposa e seu filho estão
presos. Temos, em seguida, o interrogatório de seu filho, Nicky, no qual ficamos
sabendo que ele havia resistido à prisão, cuspindo e chutando os soldados. Na
sequência, temos o de Gila, esposa de Nick, no qual ficamos sabendo como ela e
seu marido se conheceram quando ela tinha dezoito anos. Somos informados também
sobre o pai dela, um herói que deu a vida por seu Deus e por seu país. Por fim,
Victor e Nicolas voltam a se encontrar, para um último encontro. Vemos que Victor
sucumbiu, submetendo-se ao governo, assim como sua mulher, que será libertada
uma semana depois. A peça termina bruscamente, com a insinuação de que o menino
está morto.
Como
já foi dito, não é uma peça difícil de ser montada. Podemos ter três alunos
mais velhos (para interpretar o casal e o interrogador) e um mais novo (para
interpretar o filho). Como não há uma descrição das roupas poderão ser
utilizadas roupas comuns. Além disso, pelas poucas indicações cênicas
referentes ao ambiente vemos que é muito simples. Temos o aposento com a porta
de entrada. Sabemos que nela há uma secretária, com um interfone sobre ela (PINTER,
2002, p. 178), de localização incerta (provavelmente de frente para a porta), e
um aparador com bebidas e copos (cuja localização não está explicitada) (PINTER,
2002, p. 178; 187). Como não há mudança de ambiente isso torna tudo mais fácil.
Como
o interesse do dramaturgo é criticar o uso da violência, o professor pode
trabalhar com o aluno discutindo a questão da violação dos direitos humanos.
Ela pode ser discutida dentro dos regimes ditatoriais, mas também na
contemporaneidade. Pode se discutir a questão dos presos políticos, da
perseguição aos intelectuais, artistas, etc.. Como a peça aborda a questão de
uma ditadura alicerçada na religião pode-se discutir temas referentes à forma
como religião e política tem se misturado ao longo da história. Diante da
possível morte do menino e do estupro de sua mãe pode-se também discutir
questões referentes a violência contra a criança e contra a mulher. Se lermos o
texto com atenção veremos que muitos temas podem ser trabalhados, indo além de
nossa proposta inicial.
Além
disso, o mais importante. É que o nosso objetivo não é tanto ressaltar o valor
pedagógico que a peça de Pinter possui. Mas, mostrar como o teatro seja por
meio da leitura e estudo do texto, seja por meio da encenação, pode ser um
importante instrumento para o ensino e para a formação do aluno como pessoa. Além
disso, diante da possibilidade da participação da sociedade na escola, seria um
meio de procurar fazer da escola algo relevante para a comunidade na qual está
inserida.
Discutindo algumas questões
presentes na peça.
A
peça de Pinter não precisa ser utilizada de forma isolada, outros textos podem
enriquecer sua utilização. Como exemplo, escolhemos a ‘Declaração Universal dos
Direitos Humanos’. Ela foi elaborada pela Assembleia Geral das Nações Unidas,
sendo proclamada no dia 10 de dezembro de 1948. Ela foi elaborada depois das
duas guerras mundiais. Sua origem está relacionada, especificamente, ao impacto
das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial e ao desejo de
garantir, o indivíduo, certos direitos diante dos poderes públicos. Os abusos que
haviam sido anteriormente cometidos pelos regimes autoritários ainda estavam
frescos na memória de todos. Mas o que são esses direitos? João Baptista
Herkenhoff nos dá a seguinte definição (1997, p. 145):
“Por
direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos aqueles
direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua
própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que
não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são
direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir”.
Uma
das características dos regimes ditatoriais, mas não somente deles (como
podemos em diferentes democracias, como o Brasil), é a ideia de que
determinados grupos e indivíduos podem perder sua liberdade e seus direitos por
oposição ao regime. O que tira das pessoas sua liberdade política. Consequentemente,
não é de se surpreender que a liberdade política tenha sido garantida pelo 2º
artigo da ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’ (ONU, 1948, p. 2):
“Todos
os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na
presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de
sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional
ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso,
não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou
internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse
país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma
limitação de soberania”.
Ao
mesmo tempo, existe a ideia de que os que estão no poder estão acima da lei. Vemos
isso na peça quando Nicolas, visivelmente orgulhoso de sua autoridade, afirma:
“Posso fazer tudo o que me apetecer” (PINTER, 2002, p. 183). Não somente
orgulhoso, mas seguro de sua autoridade: “Todos me respeitam aqui. Tu
inclusive, não é? Acho que é a atitude certa” (PINTER, 2002, p. 179). Toda a
peça gira em torno dessas questões, que não podem deixar de ser discutidas
quando se trata dos estudos referentes a uma ditadura. Ao mesmo tempo, o
professor pode aprofundar outras questões paralelas como a diferença entre ditadura
e totalitarismo, a participação dos EUA nos golpes militares, a conceituação do
que foi o fascismo, o nazismo, o stalinismo e o salazarismo.
O
primeiro elemento a ser destacado é a presença da violência física, que pode se
manifestar por meio da tortura e do assassinato, mas também por meio de
agressões físicas e verbais (não só da parte dos militares ou policiais, mas
também praticada pelo cidadão comum que apoia o regime e vê no outro um inimigo
a ser combatido). O professor pode trabalhar a noção de “massa”, tal como foi
analisada por Elias Canetti no livro ‘Massa e Poder’ (2005), uma obra
fundamental sobre o tema. Pode-se discutir o 5º artigo da ‘Declaração Universal
dos Direitos Humanos’ (ONU, 1948, p. 2) que diz: “Ninguém será submetido a tortura
nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. Não se pode
esquecer que o desrespeito a vida é o ápice da violação dos direitos
humanos.
“Outro
grave problema se refere às vítimas que acabavam sendo mortas durante a
tortura. Médicos legistas forneceram laudos falsos que ocultavam as marcas das
torturas. Também justificavam as mortes como sendo de causas naturais ou por
atropelamentos, suicídios e mortes em tiroteios. Muitos legistas apresentavam
os torturados como se estivessem gozando de perfeita saúde. Muitos cadáveres
foram sepultados anonimamente, e até hoje familiares não sabem o que aconteceu
com os corpos das vítimas (BORGES; NORDER, 2008, p. 5)”.
Outro
artigo da ‘Declaração’ que pode ser discutido com os alunos é o 12º (1948, p.
3), que diz: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na
sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua
honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem
direito a proteção da lei”. Segundo Oliveira (2014, 328), na peça Gila é
“ofendida constantemente por Nicolas, que deixa no ar a dúvida se ela não
terminará por incorporar as acusações”. Esse fato pode servir uma discussão
sobre o modo como o regime ditatorial pode levar as vítimas do regime a se
verem como merecedoras daquele tratamento por terem cometido um crime. Questão
importante quando se estuda a repressão promovida na Rússia, pelo stalinismo.
E,
por fim, temos a questão da oposição política. Ao se abordar o tema das
ditaduras não se pode deixar de abordar a questão da oposição ao regime, nas
mais diferentes formas. A organização de grupos de oposição, as críticas ao
regime por meio da arte, nas suas mais diferentes manifestações (música, cinema,
teatro, poesia, romance, etc.), por meio das análises (históricas,
sociológicas, políticas, etc.), são alguns dos temas que podem ser tratados. Na
peça, somos informados que ao ser preso, mesmo sendo uma criança, Nicky lutou
com os soldados. Isto foi a causa de sua morte, pois ele foi considerado um
criminoso e foi condenado por seu ato, como se tivesse cometido algum tipo de
blasfêmia:
“O
teu filho tem...sete. É um fedelhozito. Educaste-o assim. Ensinaste-o a ser
assim. Podias ter escolhido. Podias tê-lo encorajado a ser uma pessoa de bem.
Em vez disso, encorajaste-o a ser um fedelhozito. Encorajaste-o a cuspir, a
atacar soldados honrados, soldados de Deus (PINTER, 2002, p. 180)”.
Esse
episódio é importante para que o professor possa discutir o fato de que muitos
pagaram um alto preço ao lutarem por seus ideais, por seu desejo de
transformação, na busca de uma sociedade mais justa. Ao mesmo tempo, pode
servir de ponto de partida para uma análise crítica de diferentes sociedades.
Daquelas em que, o aparente sucesso de um processo de transformação, em vez de
levar a uma sociedade mais justa, levou a um regime ainda mais opressivo.
Referências:
Rodrigo
Conçole Lage. Graduado em História (UNIFSJ). Especialista em História Militar
(UNISUL). É professor de História da SEEDUC-RJ.
BORGES,
Adriana Cristina; NORDER, Luiz Antônio Cabello. Tortura e violência por motivos
políticos no regime militar no Brasil. SEMINÁRIO DE PESQUISA EM CIÊNCIAS
HUMANAS, 7, 2008. Londrina. Anais do 7º Seminário
de Pesquisa em Ciências Humanas. Londrina: Eduel, 2008. 12 p. Disponível
em: <http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/arqtxt/resumos-anais/AdrianaCBorges.pdf>.
Acesso em 15 nov. 2017.
CANETTI,
Elias. Massa e poder. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
HERKENHOFF,
João Baptista. Direitos Humanos: A construção
universal de uma utopia. São Paulo: Editoria Santuário, 1997.
OLIVEIRA,
Ubiratan Paiva de. Harold Pinter e
outros: os limites da realidade. São Paulo: Todas as musas, 2014.
ONU.
Declaração Universal dos Direitos
Humanos, 1948. Disponível em:
<http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em 15 nov. 2017.
PINTER,
Harold. Um para o caminho. In: Teatro II.
Trad. Jorge Silva Melo... [et al.]. Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 177-189.
Boa tarde Rodrigo,
ResponderExcluirO roteiro utilizado foi o do próprio autor, ou foi feita alguma adaptação? Estimular os estudantes a desenvolverem o seu próprio roteiro a partir de uma pesquisa sobre as temáticas, não é mais efetiva na construção dos saberes do que utilizar uma obra pronta? Gostaria de conhecer sua opinião.
Maicon Roberto Poli de Aguiar
A minha ideia de trabalhar com o texto do Pinter envolve uma série de questões, como disse no texto, inclusive para um melhor conhecimento de sua obra entre nós. De qualquer modo, não creio que seja necessariamente mais efetiva, até porque a utilização de textos literários, filmes, músicas e jogos de videogame muitas vezes trouxeram e trazem muitos bons resultados quando bem trabalhados. Existem alunos que realmente gostam de atuar. Assim, o envolvimento dos alunos na montagem de uma peça por si só pode ser muito estimulante, independentemente do fato deles terem ou não escrito o texto. Até porque nem sempre os alunos estarão dispostos a escrever um. Problema que alguns professores de literatura encontram quando trabalham com escrita de poemas e contos, por exemplo. O que realmente importa é que o aluno esteja verdadeiramente envolvido na atividade. Assim, se o professor achar que escrever uma peça pode ser algo mais efetivo, e os alunos se entusiasmarem com a ideia, nada impede que ele opte por isso. O que o professor vai precisar é de um maior planejamento, de mais tempo e, talvez, só poderá trabalhar com alunos um pouco mais velhos, pois os muito novos podem não conseguir escrever uma peça. De qualquer forma, cada turma é diferente da outra e mesmo que em alguns casos isso não dê certo não quer dizer que em outras turmas não vai funcionar.
ResponderExcluirAtt.
Rodrigo Conçole Lage
Olá! Concordo que escrever seria mais complicado por causa da pouca habilidade de escrita da maioria dos alunos. Mas o que eu já fiz e deu muito certo foi a improvisação e também a montagem de uma história deles mas sem pedir por escrito. Claro, isso não invalida de maneira alguma o uso de um texto pronto, inclusive tenho interesse em ler para ver se posso utilizar nas minhas aulas.
ExcluirMonaquelly Carmo de Jesus
Olá Monaquelly,
ExcluirSim, a improvisação é uma coisa boa também. Principalmente se se trabalha com algo que está mais próximo da realidade que eles vivem. Acho que para discutir questões sociais e mais ligadas a atualidade é algo bem interessante. De modo geral acho que o teatro em todas as suas diferentes formas é um instrumento pedagógico muito bom para ser trabalhado.
Att. Rodrigo Conçole Lage