Rodrigo Conçole Lage


'UM PARA O CAMINHO' DE HAROLD PINTER: UTILIZANDO O TEATRO COMO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO


Introdução
Um dos grandes problemas enfrentados pelos educadores na contemporaneidade é a falta de interesse de muitos alunos. Assim, um dos grandes desafios encontrados pelos professores é a dificuldade de despertar o interesse dos alunos. Tornar uma aula atrativa e instrutiva. Como um dos conteúdos básicos do currículo escolar, no que diz respeito ao ensino da História, é o tema da ditadura nós escolhemos como instrumento pedagógico uma peça de teatro do dramaturgo inglês Harold Pinter, vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2005.

A escolha desta peça se deve a três fatores. Em primeiro lugar, as motivações que levaram o dramaturgo a escrevê-la. Ao explicar aos alunos o que levou Pinter a escrever ‘Um para o caminho’ o professor pode promover uma discussão sobre a importância do engajamento políticos e das diferentes formas que o indivíduo pode atuar politicamente dentro da sociedade. Em segundo lugar, o conteúdo do texto pode ajudar o aluno a perceber como a violência e a opressão de um regime ditatorial podem se manifestar de diferentes formas (física, psicológica e emocional). Nesse sentido o a leitura do texto seria um complemento para o material didático.

Por fim, como é uma peça pequena, com um cenário muito simples e com poucos personagens ela pode ser encenada com certa facilidade em algum evento escolar. Acredito que, mesmo que muitos não queiram participar, dependendo do tamanho das turmas, o professor irá conseguir, com alguma facilidade, encontrar alunos que ficarão animados diante da possibilidade de participar de uma peça. Além disso, é uma forma de se fazer da escola um lugar prazeroso para o aluno.

Iremos então apresentar o autor e a peça para, na sequência, discutir alguns pontos do texto que poderiam ser trabalhados. Além disso, não se pode esquecer que o professor de história não precisa trabalhar sozinho. Ele poderia realizar um trabalho conjunto com o de literatura ou de inglês, que também poderiam utilizar o texto em suas aulas. Afinal, seria interessante apresentar a obra de um dramaturgo que é pouco conhecido no Brasil.

O escritor e sua obra
Harold Pinter, vencedor do Nobel de Literatura de 2005, nasceu em 1930, na cidade de Londres. Ele foi poeta, romancista, roteirista, ator, diretor e é considerado um dos maiores dramaturgos do século XX. Ao longo de sua carreira, Pinter abordou diferentes assuntos em suas peças, roteiros, poemas e em sua ficção; sendo que os temas políticos passaram a ter preponderância a partir de determinado momento.

Um para o caminho’ é uma peça política, em um ato, que ele escreveu numa única noite. Segundo a esposa de Pinter a origem da peça pode ser remetida a 1983 quando, após a leitura do livro ‘Prisoner Without a Name, Cell Without a Number’ de Jacobo Timerman, o dramaturgo pensou pela primeira vez em escrever sobre o assunto. Contudo, ela só veio a ser escrita em janeiro de 1984, após uma conversa que teve com duas jovens turcas que ele havia conhecido em uma festa de aniversário. O título da peça refere-se a uma frase utilizada por Nicolas em diferentes momentos (PINTER, 2002, p. 180, 182, etc.) que, segundo Ubiratan Paiva (2014, p. 73), tem o sentido de saideira:

“Além de interrogatórios e torturas, há uma atividade reiteradamente repetida por Nicolas durante todo o tempo (...). Trata-se do fato de que o interrogador serve uísque para si sete vezes e ainda mais uma dose para Victor quando diz que ele pode ir embora: a saideira de que fala o título”.

Ao conversar sobre a tortura nas prisões turcas elas disseram, com total indiferença, que os prisioneiros deviam ser comunistas, como se isso fosse uma justificativa para o uso da violência. Indignado com essa indiferença, Pinter a escreveu como uma forma de expor sua revolta. Foi o primeiro texto escrito após um período de bloqueio, que durou três anos, e deu início à fase política de sua produção. ‘Um para o caminho’ trata dos interrogatórios sofridos pelos diferentes membros de uma família numa prisão por, de alguma forma, se oporem ao regime.

Primeiramente interroga Victor, o que nos permite saber que sua esposa e seu filho estão presos. Temos, em seguida, o interrogatório de seu filho, Nicky, no qual ficamos sabendo que ele havia resistido à prisão, cuspindo e chutando os soldados. Na sequência, temos o de Gila, esposa de Nick, no qual ficamos sabendo como ela e seu marido se conheceram quando ela tinha dezoito anos. Somos informados também sobre o pai dela, um herói que deu a vida por seu Deus e por seu país. Por fim, Victor e Nicolas voltam a se encontrar, para um último encontro. Vemos que Victor sucumbiu, submetendo-se ao governo, assim como sua mulher, que será libertada uma semana depois. A peça termina bruscamente, com a insinuação de que o menino está morto.

Como já foi dito, não é uma peça difícil de ser montada. Podemos ter três alunos mais velhos (para interpretar o casal e o interrogador) e um mais novo (para interpretar o filho). Como não há uma descrição das roupas poderão ser utilizadas roupas comuns. Além disso, pelas poucas indicações cênicas referentes ao ambiente vemos que é muito simples. Temos o aposento com a porta de entrada. Sabemos que nela há uma secretária, com um interfone sobre ela (PINTER, 2002, p. 178), de localização incerta (provavelmente de frente para a porta), e um aparador com bebidas e copos (cuja localização não está explicitada) (PINTER, 2002, p. 178; 187). Como não há mudança de ambiente isso torna tudo mais fácil.

Como o interesse do dramaturgo é criticar o uso da violência, o professor pode trabalhar com o aluno discutindo a questão da violação dos direitos humanos. Ela pode ser discutida dentro dos regimes ditatoriais, mas também na contemporaneidade. Pode se discutir a questão dos presos políticos, da perseguição aos intelectuais, artistas, etc.. Como a peça aborda a questão de uma ditadura alicerçada na religião pode-se discutir temas referentes à forma como religião e política tem se misturado ao longo da história. Diante da possível morte do menino e do estupro de sua mãe pode-se também discutir questões referentes a violência contra a criança e contra a mulher. Se lermos o texto com atenção veremos que muitos temas podem ser trabalhados, indo além de nossa proposta inicial.

Além disso, o mais importante. É que o nosso objetivo não é tanto ressaltar o valor pedagógico que a peça de Pinter possui. Mas, mostrar como o teatro seja por meio da leitura e estudo do texto, seja por meio da encenação, pode ser um importante instrumento para o ensino e para a formação do aluno como pessoa. Além disso, diante da possibilidade da participação da sociedade na escola, seria um meio de procurar fazer da escola algo relevante para a comunidade na qual está inserida.

Discutindo algumas questões presentes na peça.
A peça de Pinter não precisa ser utilizada de forma isolada, outros textos podem enriquecer sua utilização. Como exemplo, escolhemos a ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’. Ela foi elaborada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, sendo proclamada no dia 10 de dezembro de 1948. Ela foi elaborada depois das duas guerras mundiais. Sua origem está relacionada, especificamente, ao impacto das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial e ao desejo de garantir, o indivíduo, certos direitos diante dos poderes públicos. Os abusos que haviam sido anteriormente cometidos pelos regimes autoritários ainda estavam frescos na memória de todos. Mas o que são esses direitos? João Baptista Herkenhoff nos dá a seguinte definição (1997, p. 145):

“Por direitos humanos ou direitos do homem são, modernamente, entendidos aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir”.

Uma das características dos regimes ditatoriais, mas não somente deles (como podemos em diferentes democracias, como o Brasil), é a ideia de que determinados grupos e indivíduos podem perder sua liberdade e seus direitos por oposição ao regime. O que tira das pessoas sua liberdade política. Consequentemente, não é de se surpreender que a liberdade política tenha sido garantida pelo 2º artigo da ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’ (ONU, 1948, p. 2):

“Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania”.

Ao mesmo tempo, existe a ideia de que os que estão no poder estão acima da lei. Vemos isso na peça quando Nicolas, visivelmente orgulhoso de sua autoridade, afirma: “Posso fazer tudo o que me apetecer” (PINTER, 2002, p. 183). Não somente orgulhoso, mas seguro de sua autoridade: “Todos me respeitam aqui. Tu inclusive, não é? Acho que é a atitude certa” (PINTER, 2002, p. 179). Toda a peça gira em torno dessas questões, que não podem deixar de ser discutidas quando se trata dos estudos referentes a uma ditadura. Ao mesmo tempo, o professor pode aprofundar outras questões paralelas como a diferença entre ditadura e totalitarismo, a participação dos EUA nos golpes militares, a conceituação do que foi o fascismo, o nazismo, o stalinismo e o salazarismo. 

O primeiro elemento a ser destacado é a presença da violência física, que pode se manifestar por meio da tortura e do assassinato, mas também por meio de agressões físicas e verbais (não só da parte dos militares ou policiais, mas também praticada pelo cidadão comum que apoia o regime e vê no outro um inimigo a ser combatido). O professor pode trabalhar a noção de “massa”, tal como foi analisada por Elias Canetti no livro ‘Massa e Poder’ (2005), uma obra fundamental sobre o tema. Pode-se discutir o 5º artigo da ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’ (ONU, 1948, p. 2) que diz: “Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. Não se pode esquecer que o desrespeito a vida é o ápice da violação dos direitos humanos. 

“Outro grave problema se refere às vítimas que acabavam sendo mortas durante a tortura. Médicos legistas forneceram laudos falsos que ocultavam as marcas das torturas. Também justificavam as mortes como sendo de causas naturais ou por atropelamentos, suicídios e mortes em tiroteios. Muitos legistas apresentavam os torturados como se estivessem gozando de perfeita saúde. Muitos cadáveres foram sepultados anonimamente, e até hoje familiares não sabem o que aconteceu com os corpos das vítimas (BORGES; NORDER, 2008, p. 5)”.

Outro artigo da ‘Declaração’ que pode ser discutido com os alunos é o 12º (1948, p. 3), que diz: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei”. Segundo Oliveira (2014, 328), na peça Gila é “ofendida constantemente por Nicolas, que deixa no ar a dúvida se ela não terminará por incorporar as acusações”. Esse fato pode servir uma discussão sobre o modo como o regime ditatorial pode levar as vítimas do regime a se verem como merecedoras daquele tratamento por terem cometido um crime. Questão importante quando se estuda a repressão promovida na Rússia, pelo stalinismo.

E, por fim, temos a questão da oposição política. Ao se abordar o tema das ditaduras não se pode deixar de abordar a questão da oposição ao regime, nas mais diferentes formas. A organização de grupos de oposição, as críticas ao regime por meio da arte, nas suas mais diferentes manifestações (música, cinema, teatro, poesia, romance, etc.), por meio das análises (históricas, sociológicas, políticas, etc.), são alguns dos temas que podem ser tratados. Na peça, somos informados que ao ser preso, mesmo sendo uma criança, Nicky lutou com os soldados. Isto foi a causa de sua morte, pois ele foi considerado um criminoso e foi condenado por seu ato, como se tivesse cometido algum tipo de blasfêmia:

“O teu filho tem...sete. É um fedelhozito. Educaste-o assim. Ensinaste-o a ser assim. Podias ter escolhido. Podias tê-lo encorajado a ser uma pessoa de bem. Em vez disso, encorajaste-o a ser um fedelhozito. Encorajaste-o a cuspir, a atacar soldados honrados, soldados de Deus (PINTER, 2002, p. 180)”.

Esse episódio é importante para que o professor possa discutir o fato de que muitos pagaram um alto preço ao lutarem por seus ideais, por seu desejo de transformação, na busca de uma sociedade mais justa. Ao mesmo tempo, pode servir de ponto de partida para uma análise crítica de diferentes sociedades. Daquelas em que, o aparente sucesso de um processo de transformação, em vez de levar a uma sociedade mais justa, levou a um regime ainda mais opressivo.

Referências:
Rodrigo Conçole Lage. Graduado em História (UNIFSJ). Especialista em História Militar (UNISUL). É professor de História da SEEDUC-RJ.

BORGES, Adriana Cristina; NORDER, Luiz Antônio Cabello. Tortura e violência por motivos políticos no regime militar no Brasil. SEMINÁRIO DE PESQUISA EM CIÊNCIAS HUMANAS, 7, 2008. Londrina. Anais do 7º Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas. Londrina: Eduel, 2008. 12 p. Disponível em: <http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/arqtxt/resumos-anais/AdrianaCBorges.pdf>. Acesso em 15 nov. 2017.
CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
HERKENHOFF, João Baptista. Direitos Humanos: A construção universal de uma utopia. São Paulo: Editoria Santuário, 1997.
OLIVEIRA, Ubiratan Paiva de. Harold Pinter e outros: os limites da realidade. São Paulo: Todas as musas, 2014.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em 15 nov. 2017.
PINTER, Harold. Um para o caminho. In: Teatro II. Trad. Jorge Silva Melo... [et al.]. Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 177-189.


4 comentários:

  1. Boa tarde Rodrigo,

    O roteiro utilizado foi o do próprio autor, ou foi feita alguma adaptação? Estimular os estudantes a desenvolverem o seu próprio roteiro a partir de uma pesquisa sobre as temáticas, não é mais efetiva na construção dos saberes do que utilizar uma obra pronta? Gostaria de conhecer sua opinião.

    Maicon Roberto Poli de Aguiar

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  2. A minha ideia de trabalhar com o texto do Pinter envolve uma série de questões, como disse no texto, inclusive para um melhor conhecimento de sua obra entre nós. De qualquer modo, não creio que seja necessariamente mais efetiva, até porque a utilização de textos literários, filmes, músicas e jogos de videogame muitas vezes trouxeram e trazem muitos bons resultados quando bem trabalhados. Existem alunos que realmente gostam de atuar. Assim, o envolvimento dos alunos na montagem de uma peça por si só pode ser muito estimulante, independentemente do fato deles terem ou não escrito o texto. Até porque nem sempre os alunos estarão dispostos a escrever um. Problema que alguns professores de literatura encontram quando trabalham com escrita de poemas e contos, por exemplo. O que realmente importa é que o aluno esteja verdadeiramente envolvido na atividade. Assim, se o professor achar que escrever uma peça pode ser algo mais efetivo, e os alunos se entusiasmarem com a ideia, nada impede que ele opte por isso. O que o professor vai precisar é de um maior planejamento, de mais tempo e, talvez, só poderá trabalhar com alunos um pouco mais velhos, pois os muito novos podem não conseguir escrever uma peça. De qualquer forma, cada turma é diferente da outra e mesmo que em alguns casos isso não dê certo não quer dizer que em outras turmas não vai funcionar.

    Att.
    Rodrigo Conçole Lage

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    1. Olá! Concordo que escrever seria mais complicado por causa da pouca habilidade de escrita da maioria dos alunos. Mas o que eu já fiz e deu muito certo foi a improvisação e também a montagem de uma história deles mas sem pedir por escrito. Claro, isso não invalida de maneira alguma o uso de um texto pronto, inclusive tenho interesse em ler para ver se posso utilizar nas minhas aulas.

      Monaquelly Carmo de Jesus

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    2. Olá Monaquelly,

      Sim, a improvisação é uma coisa boa também. Principalmente se se trabalha com algo que está mais próximo da realidade que eles vivem. Acho que para discutir questões sociais e mais ligadas a atualidade é algo bem interessante. De modo geral acho que o teatro em todas as suas diferentes formas é um instrumento pedagógico muito bom para ser trabalhado.

      Att. Rodrigo Conçole Lage

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