INIMIGOS
EM PIXELS: A REPRESENTAÇÃO DOS
INIMIGOS DOS ESTADOS UNIDOS EM 'COMMAND
& CONQUER'
Para
além do entretenimento, os Jogos Digitais podem ser percebidos pelos
historiadores como lugares de memória (NORA, 1993), vinculando representações
do passado a eventos que são associados na memória coletiva. O saber histórico
presente nos jogos, seja na forma do enredo existente na trama ou nas
representações imagéticas do passado, são temas que estão sendo abordados pela
historiografia atualmente.
O
historiador brasileiro Rafael Rosa Hagemeyer (2012) chama a atenção para a
necessidade de o historiador perceber os diálogos presentes na trama do jogo,
para identificar visões de mundo e intencionalidades subjacentes aos jogos. Na
mesma ótica de análise, outro historiador brasileiro, Eucídio Pimenta Arruda
(2011) demonstra que os Jogos Digitais podem ser analisados pelos historiadores
sob três aspectos: a história no jogo,
que se aproxima da definição de Hagemeyer; a história do jogo, ou seja o momento em que é produzido e, o jogo e a História, que são as
possíveis historiografias com as quais os criadores do jogo tiveram contato, repercutindo
no seu aspecto final.
Embora
utilizando outro game como fontes para sua análise historiográfica, também
dialogamos com o historiador brasileiro Marco Fornaciari (2016), o qual
demonstra como a estrutura e o estilo de um jogo contribuem para suas
representações históricas e ahistóricas dentro do próprio jogo, demonstrando
que o elemento entretenimento se sobrepõe ao histórico nos jogos.
Os
Jogos Digitais, sobretudo aqueles com temática histórica, são peças chave de
uma cultura midiática e não podem ser ignorados pelos historiadores, pois conforme
destacamos anteriormente
“Os
jogos digitais têm ganhado destaque por professores de história devido ao seu
potencial de representação do passado aliado a possibilidade do aluno de
controlar diversos sujeitos envolvidos em um passado estudado, servindo, dessa
forma, como uma simulação”
[LIMA,
2017, p.250]
Seguindo
as metodologias referenciadas anteriormente temos por objetivo analisar as
representações imagéticas dos inimigos dos Estados Unidos na série de jogos Command and Conquer, apresentando como a
história do jogo, ou seja, o período histórico no qual os jogos foram
produzidos, reflete na construção imagética dos inimigos em um campo virtual, o
ambiente de pixels do jogo. O
objetivo é demonstrar como as defesas dos ideais de liberdade e justiça,
através da guerra, são colocados como necessários para que a democracia não
seja afetada por inimigos em comum dos Estados Unidos, primeiro o comunismo e
em seguida o terrorismo islâmico.
Jogando o Passado? Historiografia em
perspectiva
A
historiografia que analisa produções audiovisuais tem se ampliado nos últimos
anos, fruto do momento histórico característico do século XX, onde a ideia
dominante é que “somente a imagem “fala” verdadeiramente ao telespectador”
(ROUSSO, 2016, p.224).
Ancorados
nesse suporte, que tem como principal diferenciação a representação
audiovisual, as produções “podem reviver” determinado período histórico com
fidelidade. Em relação aos Jogos Digitais, o diferencial diz respeito as
possibilidades de simulação do passado, em que o indivíduo, ao contrário de
outras representações audiovisuais, como o cinema, deixa de ser um mero
espectador e passa a controlar suas ações em uma simulação (TELLES, 2016). As
possibilidades de um passado jogável são o cerne dos questionamentos e visões
historiográficas daqueles que estudam os jogos digitais enquanto fontes
históricas. (KAPELL e ELLIOTT, 2013)
Command
& Conquer
No
ano de 1995 era lançado a primeira versão do jogo "Command & Conquer" (Westwood
Studios, 1995), um jogo de estratégia em tempo real, onde o jogador assume
o papel de um comandante que administrando bases militares vai extraindo
recursos, construindo instalações e unidades militares para derrotar o
adversário. A série C&C, como ficou conhecida, se tornaria um marco
na história dos games, sendo aclamada por jogadores e revistas especializadas
como um clássico do estilo.
A
narrativa do jogo é iniciada com a descoberta de um mineral (Tiberium) que, devido ao seu potencial
econômico, é transformado no recurso natural mais importante para a humanidade,
gerando um conflito em escala global. Para o jogador são colocados à disposição
o controle de dois exércitos, GDI e NOD. O primeiro, Global Defense Initiative [Iniciativa de Defesa Global] é um
braço direito da ONU e representa a defesa dos países pertencentes ao lado
ocidental/democrático, já o segundo exército controlável, Brotherhood of NOD [Irmandade dos Nod] é um misto de grupo
terrorista e sociedade secreta com aspectos religiosos, seguidores de um líder
carismático chamado Kane.
A
representação dos líderes remete a uma dicotomia entre liberdade e
autoritarismo, pois, enquanto as tropas da GDI são comandadas por generais e
por um organismo de caráter global, o NOD segue à risca o que é ditado pelo seu
líder, remetendo a uma personificação do culto ao líder presente em regimes
socialistas e comunistas, na qual o jogo tende a demonstrar que o primeiro é
benéfico e o segundo não.
Apesar
da GDI ser representante das Nações Unidas, alguns aspectos dessa organização
remetem suas características ao poderio dos Estados Unidos, seja na águia - que
remete ao patriotismo ianque ou na sua proposta de ser "xerife do mundo",
protegendo as demais nações de líderes carismáticos, terrorismo e mantendo a
ordem mundial. Seguindo a mesma lógica, a irmandade dos NOD é caracterizada com
a calda de um escorpião negro e um fundo vermelho, que pode ser entendido como
uma ideologia perigosa, venenosa, que deve ser evitada.
Fig.
1
Um
ano após o lançamento do jogo original, devido ao seu sucesso e aceitação por
parte do público, é lançada uma nova versão, intitulada "Command & Conquer: Red Alert" (Westwood Studios, 1996). Esse recente
jogo também inicia uma nova série dentro do universo do game, a
série Red Alert [Alerta
Vermelho]. E o que outrora era relativamente escondido, uma denúncia mascarada
sobre uma ameaça, agora passa por uma representação direta desse inimigo
que deve ser combatido físico, simbólico e ideologicamente, o comunismo.
A
série "C&C: Red Alert"
adapta elementos da realidade para criar o pano de fundo do enredo do jogo.
Tudo se inicia na Segunda Guerra Mundial, quando Albert Einstein cria uma
máquina do tempo e consegue eliminar os planos de Adolf Hitler,
impossibilitando a criação das ideias nazistas e suas
consequências nefastas, como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Holocausto
e a ascensão do Fascismo no continente europeu. Entretanto, apesar dos
esforços, um novo inimigo surge, dessa vez mais poderoso
e praticamente indomável, a União Soviética.
O
Alerta Vermelho ao qual o título faz referência é o poder e desenvolvimento da
União Soviética como potência mundial, ameaçando os valores liberais e
democráticos propagados pelo modo de vida americano. Como não houve uma Segunda
Guerra Mundial, essa nação pode se desenvolver sendo liderada por Josef
Stalin que, aliando uma política de expansionismo, foi capaz de invadir e
conquistar a China e o leste europeu. Misturando ficção com elementos
históricos, no enredo é criado um cordão sanitário para impedir a proliferação
de ideias comunistas na Europa ocidental, não restando outra alternativa para
as nações democráticas europeias, e seu mais importante aliado, senão ir à
guerra. Mais uma vez está presente no jogo uma necessidade de defesa dos ideais
democráticos contra um inimigo extremamente perigoso, o comunismo.
Na
segunda versão de "Command &
Conquer: Red Alert 2" (EA Games, 2000), o leque de inimigos
é ampliado, incluindo Iraque, China, Cuba e Líbia, além da ameaça
constante da União Soviética, acentuando o alerta vermelho. Após o governo Bush
o Iraque torna-se um inimigo da nação, basta relembrar a Guerra do Golfo
(1990-1991) e a Guerra do Iraque (2003), o que explica a inserção deste país
como inimigo no jogo. O aspecto ideológico não é o único elemento que coloca em
lados opostos as facções que podem ser controladas pelo jogador, além de suas
motivações, o aparato tecnológico dos exércitos é diferenciado, enquanto o lado
dos aliados utiliza tecnologia de ponta como laser, os inimigos utilizam
táticas como terrorismo e armas químicas. É comum que as tropas dos exércitos
inimigos envenenem o solo para poder infligir dano nos Estados Unidos, por
exemplo.
Uma
terceira série do jogo é iniciada em 2003, Command & Conquer: Generals (Eletronic Arts, 2003). O novo jogo se aproxima da contemporaneidade
colocando inimigos reais que podem ser ameaças autênticas à democracia e ao
modo de vida propagados pelos Estados Unidos da América. Em C&C Generals o jogador pode controlar
três grupos distintos: Estados Unidos, China e Global Liberation Army [Exército de Libertação Global] um grupo
muçulmano que utiliza técnicas terroristas, intimidação e armas químicas,
sendo apoiado por lideranças árabes islamizadas com técnicas e habilidades
extremamente duvidosas. A atuação dos terroristas do GLA se estende por países
como Irã, Cazaquistão, Iraque, China, Egito, Turquia, Líbia, Somália, entre
outros.
Nas
imagens de divulgação do jogo os líderes dos grupos são representados
em posição de destaque. O caráter militar, que é um dos aspectos primordiais da
série, é enfatizado, assumindo ponto de destaque nas representações e campanhas
de divulgação do jogo. Apesar do jogo possibilitar o controle dos 3 grupos
distintos, nas imagens de divulgação o representante dos Estados Unidos assume
posição central, enquanto as demais nações são postas em plano secundário,
demonstrando uma certa tendência em criar uma hierarquia sobre qualidade e
motivações nos jogadores. Além disso, outro elemento que pode ser destacado é
que os generais da China e dos Estados Unidos são condecorados, enquanto o
líder islâmico é representando tal qual um rebelde, com o rosto coberto, uma
jaqueta de guerra e um cinto de bala ao redor do seu tronco, criando um
estereótipo sobre os povos árabes.
Fig.
2
As
representações imagéticas e discursivas presentes no jogo são compostas por
interpretações de um governo democrático que luta pela defesa de sua
soberania e ideias de liberdade e democracia, configurados pelos EUA. A China é
demonstrada como uma superpotência que utiliza o poder da sua população e as
técnicas bélicas para se tornar um gigante. E por fim, o GLA, grupo
terrorista que utiliza técnicas não ortodoxas, até para um jogo de estratégia,
para conseguir seus objetivos.
Quando
o jogador escolhe liderar determinada facção, são colocadas à disposição
diversas estruturas e unidades para controle, sendo possível além de construir
prédios, treinar tropas e gerenciar recursos, como o petróleo e energia, aumentando
o poder militar visando obter a soberania no cenário e derrotar o exército
inimigo. Uma unidade básica no jogo é o trabalhador, que recebe ordens e
possibilita ao jogador construir prédios que criam as unidades, porém mesmo
nessa unidade básica existem diferenças que perpassam ideais e visões de mundo
distintas.
Se
o jogador decide controlar o GLA, assim como as outras facções é
possível controlar trabalhadores, porém nesse caso específico, a representação
dos indivíduos deixa claro que estes são obrigados a trabalhar para o exército.
Comumente pode-se ouvir dos trabalhadores, quando selecionados, frases como
"Do not hurt me" [não me machuque], "I will obey" [eu vou
obedecer], "I'm hungry" [estou faminto] "Can I have some
shoes?" [eu poderia ter sapatos?]. Representação oposta ao que é
demonstrado quando o jogador decide controlar as tropas dos Estados Unidosque
afirmam que vão defender o seu país e a liberdade. Ainda em relação aos
trabalhadores, o exército dos Estados Unidos possui duas unidades básicas, um
veículo construtor, responsável pela construção dos edifícios e um helicóptero,
que recolhe os recursos.
Outro
ponto que pode ser destacado são as unidades do GLA, dos três grupos
jogáveis, são os únicos que não possuem suporte aéreo (Os Estados Unidos
possuem, além do já citado helicóptero, os caças F-22 e F-117 e a China o
caça MIG 29), elemento que possibilita uma soberania militar e estratégica em
relação aos outros exércitos. As unidades do grupo terroristas são
representadas como rebeldes armados, multidões enfurecidas, atiradores de
elite, sequestradores de veículos, homens e carros bombas. Além de tanques,
modelo Scorpion, e
veículos urbanos adaptados para o combate no deserto, a estratégia do
exército é a prática do terror, aliado com armas químicas.
Conclusão – História em Jogo
O
historiador espanhol Juan Francisco Alcázar (2016) chama a atenção da
necessidade de nós historiadores tomarmos conhecimento das representações
presentes nos jogos, pois diversos alunos chegarão aos bancos escolares e
universitários com conhecimentos do passado baseados não somente no que leram
ou assistiram, mas, sobretudo, ancorados naquilo que eles jogaram.
Diante
desse cenário podemos falar em uma Cultura Histórica dos Jogos Digitais com
temáticas históricas ou, de uma maneira mais simples, uma História em Jogo.
Referências
Hezrom
Vieira Costa Lima é Mestre em História pela UFPB, atualmente é Professor da
UNIP (Campina Grande – PB) e administra o blog História em Jogo.
ALCÁZAR, Juan
Francisco Jiménez. De la Edad de los Imperios a la
Guerra Total: Medievo y videojuegos. Murcia: Compobell, S.L., 2016.
ARRUDA,
Eucídio Pimenta. Jogos Digitais e
Aprendizagens: o jogo Age of Empires III desenvolve idéias e raciocínios
históricos de jovens jogadores? 238 f. 2009. Tese (Doutorado em Educação) –
Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais: Belo Horizonte,
2009.
FORNACIARI,
Marco de Almeida. A Guerra em Jogo:
A Segunda Guerra Mundial em Call of Duty, 2003-2008. 198 f. 2016. Dissertação
(Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Tecnologia.
Universidade Federal Fluminense: Rio de Janeiro, 2016
HAGEMEYER,
Rafael Rosa. História & Audiovisual.
Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
KAPELL,
Matthew; ELLIOTT, Andrew (Orgs.). Playing
with the past: Digital games and the simulation of history. New
York/London: Bloomsbury, 2013.
LIMA,
Hezrom Vieira Costa. History Games como fontes históricas - Valiant Hearts e o
estudo da Grande Guerra. in NUNES, Francivaldo; KETTLE, Wesley (Orgs.). Desafios do ensino de história e prática
docente. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, 2018, p.245-252.
NORA,
Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo, n. 10, p.
7-28, dez. 1993.
ROUSSO,
Henry. A última catástrofe: a
história, o presente, o contemporâneo. Tradução Fernando Coelho e Fabrício
Coelho. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.
TELLES,
Helyom Viana. Um passado jogável? Simulação digital, videogames
e história pública. Revista Observatório.
V. 2, n. especial 1, maio, 2016. P.163-191.
Olá! Ótimo texto, todavia não deixamos de perceber que você se concentra mais na análise (narrativa) do jogo do que propriamente na analise critica da construção representativa dos personagens e do cenário do jogo. Outra questão a ser pontuada é a deficiência (a falta) de autores que trabalham com o tema “Representação” tais como: Roger Chartier; Sandra Pasavento, dentre outros. Que viriam a enriquecer a sua análise sobre a “representação dos inimigos dos Estados Unidos em C&C”.
ResponderExcluirEm se tratando de um Simpósio de Ensino de História, minha pergunta é: de que forma o jogo “C&C” pode ser trabalhado em sala de aula? E de que forma a utilização de jogos de guerra e/ou “históricos” contribuiriam para a formação de uma consciência critica dos alunos, no processo de ensino e aprendizagem de história?
VICTOR LIMA CORRÊA
Olá Victor.
ResponderExcluirExato, optei por demonstrar aspectos ideológicos a cerca dos "inimigos" dos Estados Unidos, tentando demonstrar como que o "outro" é mostrado no jogo, de que forma e em qual contexto tais inimigos são modificados na série e repercutindo no jogo.
Apesar de não aparecer no texto a ideia de representação é a mesma proposta por Chartier em "o mundo como representação", bem como as implicâncias decorrentes dessa escolha.
Os jogos podem ser utilizado em sala de aula, desde que a escola possua as condições físicas e materiais necessárias ou como tarefa paralela, em casa, onde o aluno jogará e comparará aspectos da atuação dos Estados Unidos no campo da geopolítica, percebendo elementos como imperialismo, militarismo, guerra ao terror, anticomunismo ou qualquer outro tema que o professor ache pertinente naquela análise.
A consciência crítica (e histórica!) dos alunos pode ser formada mediante a comparação entre um discurso do outro (a identificação dos inimigos) e os questionamentos acerca das justificativas propostas pelo jogo para os mesmos inimigos. Apesar de ser um jogo, ou seja, sua função óbvia é o entretenimento, jogos como esse (estratégia, guerra) expõem questões que poderiam passar despercebidas, como a naturalização do "inimigo".
Olá,
ResponderExcluirParabéns pelo texto. Gostaria de saber se vocé pensou alguma metodologia didática para uma aula utilizando o jogo?
Wendell Presley Machado Cordovil
Olá Wendell Cordovil.
ResponderExcluirNessa caso específico do Command & Conquer o processo educacional é mais voltado para um aspecto informal (educação informal). Onde o aluno joga em casa e compara as representações com o conteúdo visto em sala de aula.
Mas em uma apresentação no Simpósio anterior, apresentei um trabalho sobre a utilização do jogo Age of Empires II enquanto conteúdo da turma do 7º ano, referente ao período da Idade Média. Lá existe uma descrição detalhada de como os jogos digitais podem ser utilizados em sala de aula pelo professor de História.
Link:
http://simpohis2017b.blogspot.com.br/p/hezrom-vieira.html
Magnífico,
ExcluirParabéns pelos textos. Obrigado pela resposta.