Jessica Caroline de Oliveira


A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE RELIGIOSA NO FILME “A DÚVIDA”: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NO PERFIL SACERDOTAL



Pensando na perspectiva de que a identidade é permeada por tensões que configuram modalidades práticas, seja no tocante ao sujeito individual ou enquanto uma instituição, tal como menciona Cláudio DeNipoti (2009), este texto por objetivo tecer algumas considerações acerca da identidade religiosa, tomando como ponto de partida a produção cinematográfica intitulada como Duvida, a qual contou com a direção de John Patrick Shanley, chegando às telas no ano de 2008. A partir da seleção de alguns elementos representados no filme, pretende-se dialoga-los com informações delineadas por autores como Edson Armando Silva (2008), Pierre Sanchis (2017) e Cláudio DeNipoti et al (2009). Busca-se assim, refletir sobre a ideia de construção da identidade, neste caso, da identidade religiosa e o modo como as possíveis mudanças, transformações e permanências legam diversas tensões no seio dos pressupostos sacerdotais. Cabe salientar, que a representação aqui discutida se vincula aos princípios orquestrados por Roger Chartier (1991), pois conforme conceitua o autor, a representação é uma produção do mundo social, em que perpassam práticas que possibilitam conhecer e reconhecer uma identidade, sua forma de ser no mundo e significar-se simbolicamente. Portanto, o filme “marca de modo visível e perpetuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe”, (CHARTIER, 1991, p. 183), oportunizando olhar, de forma mais específica, a identidade religiosa, ou melhor, a representação criada sobre ela.

A seleção deste filme parte das inquietações discentes no tocante à identidade sacerdotal, em que se comenta corriqueiramente nos materiais didáticos do 7º ano, pensando especificamente a realidade discente do Núcleo Educacional João Fernando Sobral, situado em Porto União, Santa Catarina, todavia, pouco se aprofunda no sentido de explicar as nuances dos valores e códigos de comportamento de missionários vinculados à Igreja Católica, ou o que compõe a faceta de religiosos e como se pode observar as transformações, permanências e mesclas nos seus componentes identitários.

Nesta acepção, o filme retrata as tensões entre as perspectivas religiosas e educacionais que haviam entre o padre Flynn e a irmã Aloysius, os quais realizam seus trabalhos na Escola Santo Nicholas, em Bronx. De início, é evidente o paradoxo entre a personalidade de ambos os sujeitos, os quais, mesmo contando com uma identidade religiosa, apresentam especificidades no tocante a suas formas de tratamento, uso da religiosidade enquanto norma reguladora, diálogo e relações interpessoais.

Para entender estas representações fílmicas, o primeiro ponto a se compreender é a identidade religiosa, esta, conforme explica Pierre Sanchis (2017), se constrói por meio de elementos presentes na vida das pessoas, ou do contexto em que vive e da sua identidade local. Portanto, existem elementos que possibilitam que os sujeitos se identifiquem com a religiosidade, como festas, padroeiro, santos, calendário, enfim, caracteres que definem essa identidade religiosa, sendo ela sincrética, diacrônica e cumulativa, pois se identifica com as raízes históricas do local e das pessoas que ali vivem com suas manifestações e identidades individuais e/ou coletivas. Para tanto,

“A identidade que resulta desse processo é sem dúvida uma identidade unificada e organicamente construída, tanto no plano institucional quanto no nível psicossocial, mas a construção mesma dessa unidade não deixa de ser sincrética, pelo reassumir, a cada etapa, dos estratos anteriores de sua definição”. (SANCHIS, 2017, p. 16)

Em seu artigo, Sanchis (2017) sinaliza também para uma reformulação dos laços institucionais, onde a dimensão da vida religiosa, definida por elementos tradicionais e seculares, tem se aproximado de uma tradição da modernidade, isto é, plurissecular, oportunizando a recriação do universo religioso por meio de caracteres ecléticos reaproximados, sobrepostos e refundidos entre diversas tradições, as quais são produtos culturais que as pessoas possuem a sua disposição.

Nos liames desta problemática, outro elemento que é interessante refletir no que tange a identidade religiosa e as representações fílmicas se trata dos papeis definidos pelo gênero. Nesta acepção, Edson Armando Silva (2008) faz uso do conceito de “construção da realidade”, a partir do qual, é possível pensar no contexto social, nas questões de gênero e na estrutura de sentimentos que são construídos por meio da linguagem, o que é evidente no decorrer do filme. Estes papeis, desde o início do filme, revelam elementos que lhes são próprios, isto é, a figura masculina é representada por uma perspectiva mais leve, sociável e próxima das demais pessoas, além disso, os padres aparecem fumando, sorrindo, contando piadas, com discursos que fazem a comunidade a refletir sobre diferentes temas, entre eles, as fofocas. Já as mulheres, são representadas mais silenciosas, regradas e autoritárias, em que o medo é tomado como caractere para conseguir o respeito, ou melhor, a obediência do alunado.

Partindo dessas informações, Silva (2008) destaca que algumas proibições ‘comuns’ à figura feminina eram pautadas na tradicionalidade religiosa, no entanto, foi sendo desmistificada, ou ‘amenizada’ nesta época mais moderna, como é o caso de poder tocar nos vasos sagrados, purificatórios e palas – características outrora restritas ao sacerdote –, denotando assim, a exclusão da figura feminina nos espaços e práticas sagradas. Isso é evidente no filme, pois, nos momentos em que são rezadas as missas e realizados os sermões, é perceptível que somente ao sacerdote cabia esta função, ao passo que as mulheres apenas ouvem sem participar destas práticas. Além disso, conforme explica o autor, tanto o feminino quanto a sexualidade estão associados a uma definição depreciativa que a Igreja cristalizou a partir da vinculação entre sexo e pecado. O desprezo pelo prazer tem origem romana, mais precisamente com a introdução de elementos estoicista, no século II através de Santo Agostinho, em que a perspectiva de um homem livre de paixões consegue dominar seus instintos. Ainda vinculado a este pressuposto, cabe lembrar que o casamento, por exemplo, tinha como objetivo a procriação e educação da prole, sem o conceito moderno de amor.

“Esse modelo vai influencia a visão de santidade vigente no mundo cristão. A hagiografia cristã propaga continuamente modelos de virtude e de castidade e qualquer manifestação de sensualidade devia ser evitada. Outro fator de influência na imagem negativa da sexualidade no mundo cristã foram os conceitos de pureza ritual prescritos no sacerdócio do antigo testamento. Ao se introduzirem no cristianismo transformaram-se de meras prescrições em culpa moral. No antigo testamento o sacerdote, para participar do culto, deveria se abster de contatos sexuais como contato com outras matérias impuras, como sangue, por exemplo.” (SILVA, 2008, p. 199)

Para Silva (2008), a figura do sacerdote, na estrutura religiosa, está vinculada a ideia de salvação das almas, ao passo que a Igreja se centra como uma continuação da encarnação do corpo místico de Cristo, da fé e da moral. As demandas sociais e culturais legaram uma nova roupagem da identidade sacerdotal, bem como, dos princípios por eles adotados e colocados em prática na segunda metade do século XX, por meio do Concílio Vaticano II. Com este, constrói-se uma nova auto-compreensão e eclesiologia, isto é, modifica-se o diálogo inter-religioso, seja na prática missionária, funções do bispo, presbítero, religiosos e até mesmo dos leigos, ressignificando sua relação com a sociedade, sobretudo, propondo o conceito eclesial de Povo de Deus. Em algumas cenas, destaca-se o anseio do padre em aproximar a Igreja da sociedade, bem como, criar um elo com o próximo, seja por meio de seus sermões, apresentações comemorativas que tragam consigo elementos da cultura local e comum. Ou seja, que a Igreja não se feche em si mesma, mas dialoga com o mundo exterior, aproxima-se dele e o traz para dentro do dogma religioso.

Com esse novo olhar para a sociedade, houve também uma nova perspectiva no tocante para o casamento e a sexualidade, sendo assim, critica-se a depreciação do prazer e a influência, ainda presente, da filosofia estóica e conceitos jurídicos romanos, os quais tornaram depreciativa a sexualidade. Neste sentido, o matrimônio, por exemplo, é entendido como uma prática que só se torna plausível pelo amor pessoal capaz, em que tanto ele quanto a relação sexual, devem servir para o fortalecimento do amor. Não é à toa que se argumenta que a prática sexual é uma atividade humana, por isso, não deve limitar-se a procriação, tal como é o caso dos demais animais.

Essa nova formulação da Igreja permite uma abertura à sociedade moderna, provocando uma dessacralização do sacerdote, uma valorização das realidades seculares e uma nova organização da figura feminina. Isso pode ser pensando enquanto um sincretismo, pois conforme explica Sanchis (2017), o sincretismo se trata de um:

“[...] processo, polimorfo e causador em múltiplas e imprevistas dimensões, que consiste na percepção – ou na construção – coletiva de homologias de relações entre o universo próprio e o universo do Outro em contato conosco, percepção que contribui para desencadear transformações no universo próprio, sejam elas em direção ao esforço ou ao enfraquecimento dos paralelismos e/ou das semelhanças.” (SANCHIS, 2017, p. 5)

Cabe dizer também, que o sincretismo se dá na relação desigual entre duas culturas, ou seja, por meio da desigualdade e hierarquização estabelecida entre estas. Além disso, é a sua historicidade que determina a sua ordenação, a qual pode se transformar conforme os fatores que fomentam a classificação de uma cultura ou religião.

A reinterpretação diz respeito a preencher vazios de uma memória coletiva que a história não permitiu que se conservasse, ao passo que a aculturação  pode ser material ou formal: a primeira está vinculada a premissa em um movimento transformador que leva a adotar categorias, valores e comportamentos extraídos da cultura e de empréstimos sem modificar as estruturas profundas do próprio ser cultural; já a formal, está associada a adoção aos sinais diacríticos da cultura, neste caso, pensando na cultura africana e afro-brasileira, em que a opção identitária se constrói a partir de uma mudança, inconsciente e profunda. (SANCHIS, 2017)

Segundo o autor, o cristianismo, enquanto modelo de identidade do padre e da freira, se caracteriza enquanto uma religião sincrética, afinal, surgiu como uma confluência de outras três grandes correntes religiosas e/ou filosóficas: a judaica, a grega e o helenismo tardio. Dentre as suas características, pode-se elencar a escolha da autonomia e individualidade, a qual, instaurava uma nova forma de relacionar-se com Deus, naquele momento, por meio da fé. Para tal, destaca-se a formação de um grupo organizado, com funções hierárquicas, cuja papel está associado a transmissão do bem salvífico da Graça, através de sinais e símbolos que compõe essa cosmogonia religiosa. Essa cosmogonia, para Sanchis (2017), conta também com tempos, lugares sagrados, corpo sacerdotal, textos canônicos, estilo ritualístico, noutras palavras, dogmas, templos, sacerdotes e sacrifício. Estes pressupostos mantiveram um instável equilíbrio nos primeiros séculos do cristianismo, logo, são as suas flutuações e redefinições que historicamente foram implantadas nos diferentes campos por onde lançou-se, é que se define o sincretismo.

Compreender tais mudanças, permanências ou transformações desta identidade oportuniza entender a sua construção, neste caso, religiosa, bem como, quais valores foram enfatizados e selecionados como caracteres para denotar a sua roupagem. Afinal, as identidades são apropriações constituídas a partir de discursos, permeados por relações de poder e representações, como bem explicita Cláudio DeNipoti, et al (2009).

REFERÊNCIAS

Jessica Caroline de Oliveira possui graduação em História pela Universidade Estadual do Paraná, campus União da Vitória; Pós-Graduada em História e Cultura Afro-brasileira pela Universidade Cândido Mendes; é mestranda em História, Cultura e Identidades pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos Avançados, 11 (5), 1991.

DENIPOTI, Cláudio, et al. Especialização em História, Arte e Cultura. Ponta Grossa: UEPG/NUTEAD, 2009.
SANCHIS, Pierre. As tramas sincréticas da história: sincretismo e modernidade no espaço luso-brasileiro. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_28/rbcs28_10.htm Acesso em: 06/06/2017.

DÚVIDA. Direção: John Patrick Shanley. Disponível em: http://megaboxfilmesonline.com/2016/04/assistir-duvida-dublado.html Acesso em: 6/6/2017.

SILVA, Edson Armando. Transformações na identidade religiosa feminina no pós Vaticano II. Revista Brasileira de História das Religiões – Ano I, nº 1 – Dossiê Identidades Religiosas e História, 2008.






2 comentários:

  1. Olá cara autora, desde já parabenizo pelas reflexões e proposta temática, a qual trata de um assunto pertinente, instigante e, de certo modo, polêmico. Realizar um estudo acerca das questões referentes à “representação”, “identidade”, permanências e mudanças de perfis, a partir de uma análise fílmica é intrigante.
    Em se tratando de religião (ocidental), em uma perspectiva ocidental, abre um leque amplo de discussão. Nesse caso, escolho como viés de indagação a “construção das representações” e, com essa, nos remetemos à “noções/conceitos de identidade” e suas relações complexas na constituição do tecido social que, na esfera do religioso, sempre se repete à relação EU-OUTRO, que, por sua vez se dá em caráter dialético, para não dizer dicotômico, pondo de sempre em tensão a relação EU-OUTRO: Religião x crença; Cultura x folclore; Religiosidade x culto; salvação x perdição; eleito x condenado; conversor x convertido... e sendo esse binômio instituído historicamente, a partir de processos e manifestações culturais (no caso, religiosa) colonizadoras. Hoje, na contemporaneidade, marcada pela fluidez, pela interpenetração, flexibilização, mescla, em uma palavra, pelo processo de hibridismo cultural em que a sociedade vivencia. Indaga-se para os autores: os processos de mudança e permanência de um perfil sacerdotal reais e concretos existentes no interior de uma instituição religiosa é fidedignamente representado em uma obra de ficção fílmica? Mais ainda, essas representações se devem a que fatores, no entendimento dos autores?
    Att.
    Jander Fernandes Martins

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  2. Boa tarde Jander, agradeço pela leitura e participação no texto. Acredito que assim como qualquer outra representação, seja fílmica ou não, uma fonte traz traços do contexto o qual objetiva representar e, por meio destes fragmentos, torna-se possível observar aspectos que dizem respeito a uma identidade sacerdotal entendida enquanto tradicional e aquela pós Concílio. Deste modo, pensando aporte teórico arrolado no texto, identifica-se o Concílio Vaticano II enquanto o fator que legitimou as mudanças no perfil sacerdotal. Espero ter respondido sua pergunta. Novamente, muito obrigada.
    Att.
    Jessica Caroline de Oliveira

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