QUANDO 1 É MAIOR QUE 40 MIL:
REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA NO TRÂNSITO A PARTIR DA ELABORAÇÃO DE UM
DOCUMENTÁRIO
Toda e
qualquer pessoa que tem o hábito de acessar, diariamente, as mais diversas
plataformas jornalísticas – televisão, jornal, revista, internet, rádio –
dificilmente encontrará uma edição que não esteja abordando alguma notícia
relacionada à violência no trânsito. A reprodução constante desses eventos nos
meios de comunicação tornou-se tão comum que, ao final de um feriado prolongado
ou de um determinado período mais amplo, passa a ser mostrado através de um
quadro estatístico – tanto quanto aqueles com dados sobre inflação, a bolsa de
valores, os resultados esportivos, etc. –, o qual aponta o número de ocorrências,
de vítimas fatais e não fatais, bem como um comparativo com o mesmo período em
anos anteriores. Abordar a violência no trânsito não é mais uma notícia
singular, banalizou-se ao ponto de não mais chocar, de ser a regra e não a
exceção. Segundo ao então presidente do Sindicato dos Policiais Rodoviários
Federais do Distrito Federal, José Nivaldino Rodrigues:
“Aceitar que a violência possa ser um fato normal é uma
tentativa de diluir o terror que ela provoca, de se submeter aos seus
efeitos. A barbárie e o terror se manifestam de várias
formas. Uma delas é forma como são apresentados os
fatos. Uma série de justificativas infundadas e
espetaculares que impossibilitam a capacidade de apreensão e de reflexão sobre
os acontecimentos é o dado concreto do discurso que banaliza a violência” (in Rodrigues,
2011).
A
problematização dessa banalização foi o estopim para um conjunto de atividades
pedagógicas que desenvolvi junto à Escola de Ensino Médio Professora Elza
Henriqueta Techentin Pacheco – Blumenau/SC. Ao longo do ano letivo de 2016, o
corpo discente de todas as turmas da escola foi instigado a elaborar pesquisas,
produções textuais, fotografias, vídeos, cartazes e músicas que desconstruíssem
essa naturalização da violência no trânsito. Além dessas atividades, e como
resultado de todo o debate realizado ao longo desse processo, elaborou-se um
documentário intitulado “Quando 1 é Maior Que 40 Mil”, abordando a temática
para além das estatísticas e das manchetes de jornais, pensando não só o
impacto da perda de entes queridos para seus familiares e amigos, mas também a
partir da perspectiva do profissional, do governante, do ativista, do ser
humano imprescindível que o mundo não vai mais poder conhecer.
Identificando a violência
O conjunto de atividades desenvolvidas ao longo do ano
letivo estavam inseridas dentro de um projeto inter e multidisciplinar
institucionalizado dentro de nossa escola, o qual é intitulado “Festival de
Cinema Elza Pacheco”. Trata-se de uma atividade que, anualmente, realiza uma série
de debates e atividades para dialogar acerca de uma temática que é pertinente e
contemporânea aos anseios do corpo discente e docente da escola, bem como a
comunidade como um todo.
No ano de 2016, a temática selecionada foi “Violência”. A
partir dessa, discutiu-se o bullying, a violência contra mulher, indivíduos de
orientação e identidade de gênero LGBT, crianças, idosos, entre outros.
Incluído nessa gama de sub-temáticas, também estava inserido a violência no
trânsito. A demanda por essa é bastante significativa, uma vez que o
público-alvo principal são nossos estudantes de Ensino Médio, os quais estão às
vésperas de adquirirem suas habilitações enquanto motoristas, numa faixa etária
na qual estão em grande processo de transformação, por conta da transição para
a vida adulta.
“Nas sociedades ocidentais que se caracterizam pela globalização e pela
emergência de modalidades complexas nos papéis sociais em função da
sofisticação do trabalho, ocorre, de um lado, um alargamento do tempo da
formação profissional, que chega até os 25 anos ou mais e, de outro, a
antecipação do término da infância. A adolescência, assim, torna-se um período
ampliado. Nas sociedades modernas, o adolescer passou então a ser um processo
vivenciado de forma individual, de acordo com os ideais de liberdade e singularidade
reinantes. Assim, todas as dificuldades que envolvem a passagem da infância
para a vida adulta terão de ser vividas pelo jovem solitariamente. Com as
transformações físicas e psicológicas, o adolescente e quem compartilha de sua
vida veem-se mobilizados a criar formas de se estabelecer na vida adulta. Sem
rituais, cada um vai viver esse processo de forma única” (in Ranña, 2005).
Como parte
das atividades desenvolvidas dentro dos objetivos do projeto, realizamos um
questionário acerca das experiências e concepções dos estudantes frente às mais
diversas formas de violência. No que se refere à violência no trânsito,
quarenta e sete por cento dos trezentos e vinte e oitos estudantes
entrevistados, afirmaram já terem perdido entes e/ou amigos por conta de
acidentes, principalmente no uso de motocicletas, veículo pelo qual a maioria,
dentro de suas condições financeiras em formação, adquirem inicialmente após o
recebimento da habilitação. Esses números serviram para alertar aos estudantes,
do quanto os problemas causados pela violência no trânsito estão mais próximos
do que muitos imaginavam.
O impacto
dos acidentes na vida dos jovens afeta diretamente sua vida cotidiana,
limitando seu acesso ao mercado de trabalho, bem como na continuidade dos
estudos que compõe a sua formação enquanto indivíduo. “As deficiências físicas
resultantes de acidentes de trânsitos geram graves prejuízos ao indivíduo como
financeiros, familiar, de locomoção, profissional e também para a sociedade
como gastos hospitalares, previdenciários, etc.” (in MATOOSO, 2016).
No conjunto
das atividades realizadas, as pesquisas confeccionadas entorno das principais
causas da violência no trânsito permitiram aos estudantes produzirem narrativas
audiovisuais e fotografias que representassem as mesmas. Além da alta
velocidade, da direção sob influência de álcool e outras drogas, o ato de
“dirigir e utilizar o celular para mandar mensagens
instantâneas começa a aparecer como um grande desencadeador de acidentes.
Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, o ato de dirigir e
mandar ou ler mensagens de celular aumenta em 23 vezes o risco de se envolver
em acidentes” (in RODRIGUES, 2013). Abaixo, uma das produções fotográficas
realizada pelo corpo discente:
Fig.1
Como parte
fundamental do projeto, uma semana inteira, no meio do ano letivo é reservada à
exibição de filmes e vídeos que abordem a temática selecionada. Acerca da violência
no trânsito foram selecionados os seguintes materiais, obtidos a partir da
plataforma “Youtube”: “Luto em Luta” (SERRANO, 2012), “Conexão Repórter: a vida
entre duas rodas” (2013), “Motor Mania” (DISNEY, 1950). A escolha desses vídeos
foi pautada pela reflexão que os mesmos poderiam provocar entre os estudantes.
Na análise dos mesmos, respectivamente, o primeiro aborda o desrespeito às leis
de trânsito e a ineficiência das autoridades públicas responsáveis no combate
aos infratores, seja previa ou punitivamente; o segundo, aborda a violência no
uso de motocicletas; o terceiro, dialoga uma reflexão sobre o perfil dos
condutores ao volante; e, os três últimos trabalham de maneira impactante,
bastante realista, as consequências dos acidentes de trânsito. Esses últimos
foram os que mais suscitaram comentários e reflexões entre os nossos estudantes
durante os debates, o que nos permitiu perceber que os objetivos traçados para
a temática foram concretizados com certo grau de êxito.
Refletindo a violência
A partir de
todo o processo de pesquisa, debate e atividades até então realizados ao longo
de todo o ano letivo, buscamos expandir as ações desenvolvidas pelo projeto do
“Festival de Cinema” da escola, elaborando um documentário que aproximasse
ainda mais os (as) estudantes do impacto que a violência no trânsito tem sobre
seus familiares e amigos, mas também avançando para além disso, refletindo
sobre o impacto que tem para sociedade como um todo, para além das
consequências financeiras, focando na condição humana. Para essa construção,
lancei o desafio para estudantes que se propusessem e se habilitassem
voluntariamente. Dessa forma, a então estudante do segundo ano Thaynara Letícia
Kuhn abraçou a ideia e, conjuntamente desenvolvemos em parceria todo o documentário,
desde a concepção até as filmagens e a edição final.
A escolha
pela elaboração de um documentário configura-se na possibilidade do uso do
mesmo como instrumento pedagógico e, faz-se pelo alcance e impacto que as
imagens têm como discurso sobre os (as) estudantes. Por meio de imagens, estes podem
trilhar novos caminhos na construção de interpretações referentes a temática,
não apenas limitando-se ao que é registrado pela linguagem escrita. Nesse
sentido,
“as
imagens são, e têm sido sempre, um tipo de linguagem, ou seja, atestam uma intenção
de comunicar, que é dotada de um sentido e é produzida a partir de uma ação
humana intencional. E, nessa medida, as imagens partilham com outras formas de
linguagem a condição de serem simbólicas, isto é, são portadoras de
significados para além daquilo que é mostrado” (in Pesavento, 2008, p.99).
O processo
de desenvolvimento do documentário foi em grande parte fundamentado pelas
discussões realizadas pelo “Festival de Cinema”, mas ao mesmo tempo, buscamos
construir a narrativa documental menos focados às notícias – ainda que as
utilizamos – e mais em depoimentos de pessoas que perderam entes queridos. Essa
fonte/dinâmica foi utilizada em dois momentos dentro do documentário, a partir
dos seguintes questionamentos: “Como ocorreu o acidente?” e “O que o mundo
perdeu?”. A ideia central era sensibilizar a audiência quanto às causas dos
acidentes narrados – o que remete à reflexão quanto à imprudência simbolizada
pela alta velocidade e o uso de álcool no ato de dirigir –, bem como ao
significativo contingente de jovens que têm suas vidas interrompidas sem terem
aproveitado suas possibilidades, mas acima de tudo, sem que o mundo pudesse
aproveitar todas as contribuições que esses poderiam ter oferecido ao mesmo.
Uma das
particularidades da história oral é compreender de que forma o que foi
testemunhado é percebido de diferentes formas por cada uma das pessoas
envolvidas, configurando diferentes destaques e percepções sobre o objeto de
estudo.
“A produção
deliberada do documento da história oral permite recuperar aquilo que não é
encontrado em documentos de outra natureza. Nota-se, afinal, que a importância
do testemunho oral pode estar concentrada não na veracidade de um evento, mas
na forma como ele é lembrado, o que o torna psicologicamente verdadeiro” (in Thompson,
1992).
No primeiro
recorte da narrativa documental, as respostas à questão “Como ocorreu o
acidente?” trouxeram depoimentos de amigos e parentes que perderam entes
queridos vitimados por acidentes em alta velocidade, participando de rachas,
consumindo grande quantidade de álcool, sem a utilização de cinto de segurança,
com manobras imprudentes e na ausência da manutenção adequada das sinalizações
e das vias. Entre os depoentes, há aqueles que perderem o irmão, os amigos, ou
o pai com quem pouco conviveram em virtude da tenra idade em que se
encontravam. Grande parte desses depoimentos foram carregados de sentimentos de
angústia e perplexidade.
Desta
forma, a reflexão a partir desse contexto, possibilita à audiência constatar o
quanto as estatísticas apontam os jovens como significativa parcela das vítimas
de trânsito. Segundo diagnóstico do Detran/RS, “47%
dos motociclistas e caronas de moto vítimas de acidentes nos últimos cinco anos
foram jovens de 18 a 29 anos” (in Czerwonka, 2016). Em pesquisa encomendada
pelas seguradoras que pagam o DPVAT (Danos
Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres), “quase a metade dos motoristas e motociclistas
acidentados têm entre 18 e 34 anos de idade, 10% morrem e 75% ficam com
invalidez permanente” (in Jornal Nacional, 2017). Esse conjunto de
estatísticas, torna evidente o quanto é fundamental desenvolver diálogos com os
jovens acerca da violência no trânsito. O “Maio Amarelo”, campanha simbólica de
reflexão sobre a temática é apenas um ponto de partida, que deve ser levado
também a frente pela escola, pela família, pela sociedade como um todo, para
além do simples discurso.
No segundo
recorte do documentário, problematizando a alta velocidade, a qual se configura
numa das principais causas dos acidentes de trânsito, o então professor de
física de nossa escola, Marcelo Araújo Rocha, demonstrou a partir da análise
das estatísticas e dos próprios conceitos da disciplina, o quão efetivamente o
excesso de velocidade pouco influi na redução no tempo de deslocamento de uma
viagem. A edição dessa análise, logo após uma sequência de fotografias de
acidentes questionando “Mais Cedo Aonde?”, aponta argumentos bem significativos
do quanto é perigoso e desnecessário ultrapassar os limites estabelecidos pela
via, não apenas em virtude da aplicação de multas, mas essencialmente, pelo
risco à vida que essa atitude implica. Segundo o professor Marcelo,
considerando uma via não duplicada, a quantidade de veículos que passam em
média por minuto pelas rodovias catarinenses – e, consequentemente o
procedimento de ultrapassagem – a diferença entre o tempo de viagem percorrido
por veículo que trafega a 80 km/h e outra que atinge 150 km/h é de
aproximadamente nove minutos. Ou seja, arrisca-se a própria vida e a dos
outros, por menos de dez minutos. O questionamento que fica não pode ser outro,
que não: Vale a pena?
Na
sequência, no terceiro recorte da narrativa documental, através do
questionamento “O que o mundo perdeu?”, os depoimentos explanaram sobre os
sonhos não alcançados, os profissionais que não foram formados, as pessoas que
não puderam conhecer nem contribuir com o mundo. Entre as perdas estão filhos
estudiosos, pai trabalhador, fotógrafo, músicos, engenheiro, pessoas com
excelente senso de humor, amigo para todas as horas, exemplos de vida,
inclusive na hora final da vida, demonstrando o quanto esta é frágil e
facilmente ceifada quando a irresponsabilidade atinge aqueles que se consideram
inatingíveis, representado aqui pelo jovem Guilherme Mariano da Silva, o qual
ficou paraplégico após um acidente causado após ter dormido ao volante: “Quando
você é jovem, não acredita que pode acontecer com você. Brinca com que é sério.
Não imaginava que o cansaço pudesse me vencer” (in Lajolo, 2017).
Permeando
os recortes, problematizou-se a partir do título do documentário “Quando 1 é
Maior que 40 Mil” o quanto as estatísticas pouco nos atingem, pouco nos
impactam, até quando que entre as mais de quarenta mil vítimas que morrem
anualmente nas estradas brasileiras, está aquele ente querido com quem tivemos
a oportunidade de conviver por um determinado período de tempo. Se entre essa
enorme quantidade de vítimas está nosso pai, nossa mãe, um irmão, uma tia, uma
esposa, um marido, um primo, uma sobrinha, as estatísticas deixam de ser só
números, passando a ter um significado muito mais amplo. Os dados da tabela
abaixo, mostram o quanto milhares de famílias são anualmente atingidas pela
violência no trânsito.
Fig.2
Apesar do
documentário simbolizar, ao mesmo tempo, uma extensão e um simbólico
encerramento do projeto, a pesquisa e o debate constante devem sempre estar
presentes no cotidiano escolar e das famílias. Precisamos sempre desenvolver
ações concretas de combate à violência no trânsito, questionando a legislação,
o sistema judiciário, as escolhas governamentais e o nosso próprio estilo de
vida. Afinal, não importa quando, nem onde, toda a vida tem valor, não preço!
Referências
Maicon
Roberto Poli de Aguiar é graduado em História pela FURB. É mestre em Ensino de
História (ProfHistória) pela UDESC. Atua como professor da rede pública
estadual de Santa Catarina (E.E.M. Professora Elza H. T. Pacheco) em Blumenau.
AGUIAR, Maicon R. P.; KUHN, Thaynara Letícia. Quando
1 é Maior que 40 Mil in https://www.youtube.com/watch?v=GGd5SZ_XDGk,
2017.
CZERWONKA,
Mariana. Jovens são quase metade das vítimas de acidentes em moto in http://portaldotransito.com.br/noticias/moto/jovens-sao-quase-metade-das-vitimas-de-acidentes-em-motos,
2016.
JORNAL NACIONAL. Número de acidentes fatais no trânsito brasileiro aumenta in http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/10/numero-de-acidentes-fatais-no-transito-brasileiro-aumenta.html, 2017.
LAJOLO, Mariana. Trânsito no Brasil mata 47 mil por ano e deixa 400 mil com alguma sequela in http://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2017/05/1888812-transito-no-brasil-mata-47-mil-por-ano-e-deixa-400-mil-com-alguma-sequela.shtml, 2017.
MATOOSO,
Francinelly Aparecida. Jovens Vítimas de Acidente de Trânsito: Perfil e
Vivência dos Impactos na Saúde in
http://cress-mg.org.br/hotsites/Upload/Pics/41/41a3ce2a-ac81-44d0-bc50-1c8128c08bab.pdf,
2016.
PESAVENTO,
Sandra Jatahy. O mundo da imagem:
território da história cultural. In: Narrativas, imagens e
práticas sociais: percursos em história cultural. Sandra Jatahy Pesavento,
Nádia Maria Weber Santos, Miriam de Souza Rossini [orgs.] – Porto Alegre: Asterisco,
2008.
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