Maicon Roberto Poli de Aguiar


QUANDO 1 É MAIOR QUE 40 MIL: REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA NO TRÂNSITO A PARTIR DA ELABORAÇÃO DE UM DOCUMENTÁRIO


Toda e qualquer pessoa que tem o hábito de acessar, diariamente, as mais diversas plataformas jornalísticas – televisão, jornal, revista, internet, rádio – dificilmente encontrará uma edição que não esteja abordando alguma notícia relacionada à violência no trânsito. A reprodução constante desses eventos nos meios de comunicação tornou-se tão comum que, ao final de um feriado prolongado ou de um determinado período mais amplo, passa a ser mostrado através de um quadro estatístico – tanto quanto aqueles com dados sobre inflação, a bolsa de valores, os resultados esportivos, etc. –, o qual aponta o número de ocorrências, de vítimas fatais e não fatais, bem como um comparativo com o mesmo período em anos anteriores. Abordar a violência no trânsito não é mais uma notícia singular, banalizou-se ao ponto de não mais chocar, de ser a regra e não a exceção. Segundo ao então presidente do Sindicato dos Policiais Rodoviários Federais do Distrito Federal, José Nivaldino Rodrigues:

Aceitar que a violência possa ser um fato normal é uma tentativa de diluir o terror que ela provoca, de se submeter aos seus efeitos. A barbárie e o terror se manifestam de várias formas. Uma delas é forma como são apresentados os fatos. Uma série de justificativas infundadas e espetaculares que impossibilitam a capacidade de apreensão e de reflexão sobre os acontecimentos é o dado concreto do discurso que banaliza a violência” (in Rodrigues, 2011).

A problematização dessa banalização foi o estopim para um conjunto de atividades pedagógicas que desenvolvi junto à Escola de Ensino Médio Professora Elza Henriqueta Techentin Pacheco – Blumenau/SC. Ao longo do ano letivo de 2016, o corpo discente de todas as turmas da escola foi instigado a elaborar pesquisas, produções textuais, fotografias, vídeos, cartazes e músicas que desconstruíssem essa naturalização da violência no trânsito. Além dessas atividades, e como resultado de todo o debate realizado ao longo desse processo, elaborou-se um documentário intitulado “Quando 1 é Maior Que 40 Mil”, abordando a temática para além das estatísticas e das manchetes de jornais, pensando não só o impacto da perda de entes queridos para seus familiares e amigos, mas também a partir da perspectiva do profissional, do governante, do ativista, do ser humano imprescindível que o mundo não vai mais poder conhecer.

Identificando a violência
O conjunto de atividades desenvolvidas ao longo do ano letivo estavam inseridas dentro de um projeto inter e multidisciplinar institucionalizado dentro de nossa escola, o qual é intitulado “Festival de Cinema Elza Pacheco”. Trata-se de uma atividade que, anualmente, realiza uma série de debates e atividades para dialogar acerca de uma temática que é pertinente e contemporânea aos anseios do corpo discente e docente da escola, bem como a comunidade como um todo.

No ano de 2016, a temática selecionada foi “Violência”. A partir dessa, discutiu-se o bullying, a violência contra mulher, indivíduos de orientação e identidade de gênero LGBT, crianças, idosos, entre outros. Incluído nessa gama de sub-temáticas, também estava inserido a violência no trânsito. A demanda por essa é bastante significativa, uma vez que o público-alvo principal são nossos estudantes de Ensino Médio, os quais estão às vésperas de adquirirem suas habilitações enquanto motoristas, numa faixa etária na qual estão em grande processo de transformação, por conta da transição para a vida adulta.

“Nas sociedades ocidentais que se caracterizam pela globalização e pela emergência de modalidades complexas nos papéis sociais em função da sofisticação do trabalho, ocorre, de um lado, um alargamento do tempo da formação profissional, que chega até os 25 anos ou mais e, de outro, a antecipação do término da infância. A adolescência, assim, torna-se um período ampliado. Nas sociedades modernas, o adolescer passou então a ser um processo vivenciado de forma individual, de acordo com os ideais de liberdade e singularidade reinantes. Assim, todas as dificuldades que envolvem a passagem da infância para a vida adulta terão de ser vividas pelo jovem solitariamente. Com as transformações físicas e psicológicas, o adolescente e quem compartilha de sua vida veem-se mobilizados a criar formas de se estabelecer na vida adulta. Sem rituais, cada um vai viver esse processo de forma única” (in Ranña, 2005).

Como parte das atividades desenvolvidas dentro dos objetivos do projeto, realizamos um questionário acerca das experiências e concepções dos estudantes frente às mais diversas formas de violência. No que se refere à violência no trânsito, quarenta e sete por cento dos trezentos e vinte e oitos estudantes entrevistados, afirmaram já terem perdido entes e/ou amigos por conta de acidentes, principalmente no uso de motocicletas, veículo pelo qual a maioria, dentro de suas condições financeiras em formação, adquirem inicialmente após o recebimento da habilitação. Esses números serviram para alertar aos estudantes, do quanto os problemas causados pela violência no trânsito estão mais próximos do que muitos imaginavam.

O impacto dos acidentes na vida dos jovens afeta diretamente sua vida cotidiana, limitando seu acesso ao mercado de trabalho, bem como na continuidade dos estudos que compõe a sua formação enquanto indivíduo. “As deficiências físicas resultantes de acidentes de trânsitos geram graves prejuízos ao indivíduo como financeiros, familiar, de locomoção, profissional e também para a sociedade como gastos hospitalares, previdenciários, etc.” (in MATOOSO, 2016).

No conjunto das atividades realizadas, as pesquisas confeccionadas entorno das principais causas da violência no trânsito permitiram aos estudantes produzirem narrativas audiovisuais e fotografias que representassem as mesmas. Além da alta velocidade, da direção sob influência de álcool e outras drogas, o ato de

“dirigir e utilizar o celular para mandar mensagens instantâneas começa a aparecer como um grande desencadeador de acidentes. Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, o ato de dirigir e mandar ou ler mensagens de celular aumenta em 23 vezes o risco de se envolver em acidentes” (in RODRIGUES, 2013). Abaixo, uma das produções fotográficas realizada pelo corpo discente:


Fig.1

Como parte fundamental do projeto, uma semana inteira, no meio do ano letivo é reservada à exibição de filmes e vídeos que abordem a temática selecionada. Acerca da violência no trânsito foram selecionados os seguintes materiais, obtidos a partir da plataforma “Youtube”: “Luto em Luta” (SERRANO, 2012), “Conexão Repórter: a vida entre duas rodas” (2013), “Motor Mania” (DISNEY, 1950). A escolha desses vídeos foi pautada pela reflexão que os mesmos poderiam provocar entre os estudantes. Na análise dos mesmos, respectivamente, o primeiro aborda o desrespeito às leis de trânsito e a ineficiência das autoridades públicas responsáveis no combate aos infratores, seja previa ou punitivamente; o segundo, aborda a violência no uso de motocicletas; o terceiro, dialoga uma reflexão sobre o perfil dos condutores ao volante; e, os três últimos trabalham de maneira impactante, bastante realista, as consequências dos acidentes de trânsito. Esses últimos foram os que mais suscitaram comentários e reflexões entre os nossos estudantes durante os debates, o que nos permitiu perceber que os objetivos traçados para a temática foram concretizados com certo grau de êxito.

Refletindo a violência
A partir de todo o processo de pesquisa, debate e atividades até então realizados ao longo de todo o ano letivo, buscamos expandir as ações desenvolvidas pelo projeto do “Festival de Cinema” da escola, elaborando um documentário que aproximasse ainda mais os (as) estudantes do impacto que a violência no trânsito tem sobre seus familiares e amigos, mas também avançando para além disso, refletindo sobre o impacto que tem para sociedade como um todo, para além das consequências financeiras, focando na condição humana. Para essa construção, lancei o desafio para estudantes que se propusessem e se habilitassem voluntariamente. Dessa forma, a então estudante do segundo ano Thaynara Letícia Kuhn abraçou a ideia e, conjuntamente desenvolvemos em parceria todo o documentário, desde a concepção até as filmagens e a edição final.

A escolha pela elaboração de um documentário configura-se na possibilidade do uso do mesmo como instrumento pedagógico e, faz-se pelo alcance e impacto que as imagens têm como discurso sobre os (as) estudantes. Por meio de imagens, estes podem trilhar novos caminhos na construção de interpretações referentes a temática, não apenas limitando-se ao que é registrado pela linguagem escrita. Nesse sentido,

“as imagens são, e têm sido sempre, um tipo de linguagem, ou seja, atestam uma intenção de comunicar, que é dotada de um sentido e é produzida a partir de uma ação humana intencional. E, nessa medida, as imagens partilham com outras formas de linguagem a condição de serem simbólicas, isto é, são portadoras de significados para além daquilo que é mostrado” (in Pesavento, 2008, p.99).

O processo de desenvolvimento do documentário foi em grande parte fundamentado pelas discussões realizadas pelo “Festival de Cinema”, mas ao mesmo tempo, buscamos construir a narrativa documental menos focados às notícias – ainda que as utilizamos – e mais em depoimentos de pessoas que perderam entes queridos. Essa fonte/dinâmica foi utilizada em dois momentos dentro do documentário, a partir dos seguintes questionamentos: “Como ocorreu o acidente?” e “O que o mundo perdeu?”. A ideia central era sensibilizar a audiência quanto às causas dos acidentes narrados – o que remete à reflexão quanto à imprudência simbolizada pela alta velocidade e o uso de álcool no ato de dirigir –, bem como ao significativo contingente de jovens que têm suas vidas interrompidas sem terem aproveitado suas possibilidades, mas acima de tudo, sem que o mundo pudesse aproveitar todas as contribuições que esses poderiam ter oferecido ao mesmo.

Uma das particularidades da história oral é compreender de que forma o que foi testemunhado é percebido de diferentes formas por cada uma das pessoas envolvidas, configurando diferentes destaques e percepções sobre o objeto de estudo.

“A produção deliberada do documento da história oral permite recuperar aquilo que não é encontrado em documentos de outra natureza. Nota-se, afinal, que a importância do testemunho oral pode estar concentrada não na veracidade de um evento, mas na forma como ele é lembrado, o que o torna psicologicamente verdadeiro” (in Thompson, 1992).

No primeiro recorte da narrativa documental, as respostas à questão “Como ocorreu o acidente?” trouxeram depoimentos de amigos e parentes que perderam entes queridos vitimados por acidentes em alta velocidade, participando de rachas, consumindo grande quantidade de álcool, sem a utilização de cinto de segurança, com manobras imprudentes e na ausência da manutenção adequada das sinalizações e das vias. Entre os depoentes, há aqueles que perderem o irmão, os amigos, ou o pai com quem pouco conviveram em virtude da tenra idade em que se encontravam. Grande parte desses depoimentos foram carregados de sentimentos de angústia e perplexidade.

Desta forma, a reflexão a partir desse contexto, possibilita à audiência constatar o quanto as estatísticas apontam os jovens como significativa parcela das vítimas de trânsito. Segundo diagnóstico do Detran/RS, “47% dos motociclistas e caronas de moto vítimas de acidentes nos últimos cinco anos foram jovens de 18 a 29 anos” (in Czerwonka, 2016). Em pesquisa encomendada pelas seguradoras que pagam o DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres), “quase a metade dos motoristas e motociclistas acidentados têm entre 18 e 34 anos de idade, 10% morrem e 75% ficam com invalidez permanente” (in Jornal Nacional, 2017). Esse conjunto de estatísticas, torna evidente o quanto é fundamental desenvolver diálogos com os jovens acerca da violência no trânsito. O “Maio Amarelo”, campanha simbólica de reflexão sobre a temática é apenas um ponto de partida, que deve ser levado também a frente pela escola, pela família, pela sociedade como um todo, para além do simples discurso.

No segundo recorte do documentário, problematizando a alta velocidade, a qual se configura numa das principais causas dos acidentes de trânsito, o então professor de física de nossa escola, Marcelo Araújo Rocha, demonstrou a partir da análise das estatísticas e dos próprios conceitos da disciplina, o quão efetivamente o excesso de velocidade pouco influi na redução no tempo de deslocamento de uma viagem. A edição dessa análise, logo após uma sequência de fotografias de acidentes questionando “Mais Cedo Aonde?”, aponta argumentos bem significativos do quanto é perigoso e desnecessário ultrapassar os limites estabelecidos pela via, não apenas em virtude da aplicação de multas, mas essencialmente, pelo risco à vida que essa atitude implica. Segundo o professor Marcelo, considerando uma via não duplicada, a quantidade de veículos que passam em média por minuto pelas rodovias catarinenses – e, consequentemente o procedimento de ultrapassagem – a diferença entre o tempo de viagem percorrido por veículo que trafega a 80 km/h e outra que atinge 150 km/h é de aproximadamente nove minutos. Ou seja, arrisca-se a própria vida e a dos outros, por menos de dez minutos. O questionamento que fica não pode ser outro, que não: Vale a pena?

Na sequência, no terceiro recorte da narrativa documental, através do questionamento “O que o mundo perdeu?”, os depoimentos explanaram sobre os sonhos não alcançados, os profissionais que não foram formados, as pessoas que não puderam conhecer nem contribuir com o mundo. Entre as perdas estão filhos estudiosos, pai trabalhador, fotógrafo, músicos, engenheiro, pessoas com excelente senso de humor, amigo para todas as horas, exemplos de vida, inclusive na hora final da vida, demonstrando o quanto esta é frágil e facilmente ceifada quando a irresponsabilidade atinge aqueles que se consideram inatingíveis, representado aqui pelo jovem Guilherme Mariano da Silva, o qual ficou paraplégico após um acidente causado após ter dormido ao volante: “Quando você é jovem, não acredita que pode acontecer com você. Brinca com que é sério. Não imaginava que o cansaço pudesse me vencer” (in Lajolo, 2017).

Permeando os recortes, problematizou-se a partir do título do documentário “Quando 1 é Maior que 40 Mil” o quanto as estatísticas pouco nos atingem, pouco nos impactam, até quando que entre as mais de quarenta mil vítimas que morrem anualmente nas estradas brasileiras, está aquele ente querido com quem tivemos a oportunidade de conviver por um determinado período de tempo. Se entre essa enorme quantidade de vítimas está nosso pai, nossa mãe, um irmão, uma tia, uma esposa, um marido, um primo, uma sobrinha, as estatísticas deixam de ser só números, passando a ter um significado muito mais amplo. Os dados da tabela abaixo, mostram o quanto milhares de famílias são anualmente atingidas pela violência no trânsito.


Fig.2

Apesar do documentário simbolizar, ao mesmo tempo, uma extensão e um simbólico encerramento do projeto, a pesquisa e o debate constante devem sempre estar presentes no cotidiano escolar e das famílias. Precisamos sempre desenvolver ações concretas de combate à violência no trânsito, questionando a legislação, o sistema judiciário, as escolhas governamentais e o nosso próprio estilo de vida. Afinal, não importa quando, nem onde, toda a vida tem valor, não preço!


Referências
Maicon Roberto Poli de Aguiar é graduado em História pela FURB. É mestre em Ensino de História (ProfHistória) pela UDESC. Atua como professor da rede pública estadual de Santa Catarina (E.E.M. Professora Elza H. T. Pacheco) em Blumenau.

AGUIAR, Maicon R. P.; KUHN, Thaynara Letícia. Quando 1 é Maior que 40 Mil in https://www.youtube.com/watch?v=GGd5SZ_XDGk, 2017.

 

CZERWONKA, Mariana. Jovens são quase metade das vítimas de acidentes em moto in http://portaldotransito.com.br/noticias/moto/jovens-sao-quase-metade-das-vitimas-de-acidentes-em-motos, 2016.

JORNAL NACIONAL. Número de acidentes fatais no trânsito brasileiro aumenta in http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/10/numero-de-acidentes-fatais-no-transito-brasileiro-aumenta.html, 2017.


LAJOLO, Mariana. Trânsito no Brasil mata 47 mil por ano e deixa 400 mil com alguma sequela in http://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2017/05/1888812-transito-no-brasil-mata-47-mil-por-ano-e-deixa-400-mil-com-alguma-sequela.shtml, 2017.


MATOOSO, Francinelly Aparecida. Jovens Vítimas de Acidente de Trânsito: Perfil e Vivência dos Impactos na Saúde in http://cress-mg.org.br/hotsites/Upload/Pics/41/41a3ce2a-ac81-44d0-bc50-1c8128c08bab.pdf, 2016.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O mundo da imagem: território da história cultural. In: Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em história cultural. Sandra Jatahy Pesavento, Nádia Maria Weber Santos, Miriam de Souza Rossini [orgs.] – Porto Alegre: Asterisco, 2008.

RANÑA, Wagner. Os desafios da adolescência in http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/os_desafios_da_adolescencia.html, 2005.

 

RODRIGUES, José Nivaldino. A Banalidade da Violência no Trânsito e os Discursos Pós-Morte in http://www.sinprfdf.com.br/artigos/item/556-artigo-a-banalidade-da-violencia-no-transito-e-os-discursos-pos-morte, 2011.

 

RODRIGUES, Lucas de Oliveira. Jovens: as principais vítimas do trânsito in http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/sociologia/jovens-transito.htm, 2013.

 

THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.


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