“Contar
histórias”: reflexões sobre o ofício do historiador a partir do filme 'The final cut'
Introdução
O
texto problematiza o papel do historiador na produção historiográfica e no
ensino da história, tendo em vista a análise das memórias e das identidades. Que
riscos enfrenta o historiador/professor quando recorre às memórias (pessoal e
coletiva), para produzir sua análise historiográfica? A mítica noção de que os
historiadores eram guardiões da verdade revela que existe uma lacuna entre a
história construída pelos historiadores e aquela apreendida pelos indivíduos na
sociedade. A história escrita, ou seja, a historiografia, é sempre postulada.
Por
outro lado, os riscos de análises apressadas, superficiais e até mesmo contraditórias,
podem estar presente nas pesquisas históricas. Como mitigar estas
possibilidades, quando um pequeno detalhe torna-se crucial na definição de um
conceito que em última análise, incide sobre uma questão pessoal ou coletiva,
como é o caso das identidades?
Para
aprofundarmos esta temática, analisamos a obra cinematográfica “The final cut”, traduzido no Brasil
como “Violação de privacidade”. Produzido pelo cineasta Omar Naim, o filme foi
lançado em 2003 nos Estados Unidos e estrelado por Robin Williams e Jim
Caviesel. Trata-se de uma obra de ficção onde os
conceitos historiográficos como: memória, identidade, recorte histórico, entre outros, se fazem
presentes na trama.
A
utilização da arte como um método didático no ensino da história foi inaugurado
por John Lewis Gaddis (1941), que já havia percebido as
possibilidades interpretativas da pintura de Caspar David Friedrich como
metáfora do mapeamento do passado por parte dos historiadores. Em sua obra,
“Paisagens da História: como os historiadores mapeiam o passado”, Gaddis
utilizou-se das metáforas da pintura, literatura e cinema, para levantar
questões sobre como os historiadores pensam e analisam a realidade. A conexão
da história com as artes, neste caso o cinema, expande a compreensão dos
conceitos e dos caminhos que o historiador utiliza na análise de seu objeto.
A vida imitando a
arte
O
historiador, assim como o editor de memórias do filme, ao produzir o discurso
historiográfico, não é um sujeito isento, meta-histórico, pois a “subjetividade
do autor” (CERTEAU, 1982) está sempre presente. No filme, ao fazer o recorte da
vida das pessoas, Alan (Robin Williams) deixa na edição produzida, um pouco de
si mesmo.
Para
quem não conhece a obra, a sinopse do filme poderá ser útil:
“Algumas pessoas possuem em seu cérebro um implante
de memória, comprado por seus pais antes mesmo de nascerem, que registra todos
os fatos ocorridos em sua vida. Após sua morte este implante é retirado e, com
o material nele existente, é editado um filme sobre a vida da pessoa, que é
exibido em uma cerimônia póstuma chamada Rememória. Alan Hakman (Robin
Williams) é o melhor montador de filmes para a Rememória em atividade, usando
seu talento para preparar filmes que concedam a absolvição ao morto em relação
aos erros por ele cometidos em vida. Por se dedicar ao trabalho, Alan se torna
uma pessoa distante e incapaz de viver sua própria vida. Ele se considera uma
espécie de "devorador de pecados", acreditando que seu trabalho seja
um meio de perdoar os mortos e que, de alguma forma, este perdão também chegue
para ele próprio. Porém, quando busca por material em um implante para a
Rememória de um diretor da empresa que fabrica os chips, Alan encontra a imagem
de uma pessoa que marcou sua infância. É quando Alan decide iniciar uma busca
pela verdade sobre esta pessoa, em uma tentativa pessoal de conseguir sua
redenção por um erro do passado”.[www.adorocinema.com]
O
filme inicia-se com uma memória de infância do personagem principal, Alan Hakman. Alan e Louis (Liam Ranger) se aventuraram num galpão
abandonado nas vizinhanças com o intuito de brincar no espaço. Alan desafia seu
amigo a também passar por uma tábua colocada sob um foço. Ao aceitar o desafio,
Louis acaba caindo. A imagem do menino estirado no fundo do foço permanecerá na memória de Alan. Ao descer no
foço e ver o que aconteceu com seu amigo, Alan registra a imagem que ele guardará
por toda vida: o sangue escorrido próximo ao corpo do menino. Já adulto e
profissionalmente bem sucedido na função de editor de memórias, Alan buscará no
chip implantado em seu cérebro, esta lembrança e então, perceberá que não havia
sangue, mas tinta do balde que ele derrubou quando se aproximou do menino
caído. Sua lembrança fora afetada pelo trauma da queda de Louis, o que
influenciou no desenvolvimento de sua identidade e consequentemente, na sua
dedicação ao trabalho de um “devorador de pecados” de seus clientes.
O quanto de si o historiador deixa ao produzir um
discurso histórico? Quanta subjetividade está presente no recorte do
historiador em relação a determinado fato histórico? Sobre esta última
pergunta, cabe uma constatação de Le Goff no prefácio da obra de Marc Bloch
“apologia da história”. Diz ele:
“O que Marc Bloch não aceitava em seu mestre
Charles Seignobos, principal representante desses historiadores positivistas,
era iniciar o trabalho de historiador somente com a coleta dos fatos, ao passo
que uma fase anterior essencial exige do historiador a consciência de que o
fato histórico, não é um fato
“positivo”, mas o produto de uma construção ativa de sua parte para
transformar a fonte em documento e, em seguida, constituir esses documentos,
esses fatos históricos, em problema”.[ Le Goff, 2001, p. 19]
Certeau (apud
Reis, 2010, p. 18), numa crítica
contra a pretensão da história de ser a
“antípoda da ficção”, demonstra que ela esconde ou ao menos não percebe, a
força organizadora do presente em sua reconfiguração do passado. Dessa forma, “o
aparente vazio entre o sujeito-historiador e o seu objeto”, como afirmou
Catroga (2015, p. 54), é uma ficção. O objeto, o recorte, o ofício ou a arte
historiográfica flerta constantemente, numa verdadeira “pericorese” (dança) entre
o historiador e seu objeto. E o “objeto da história são os homens”, diz Bloch
(2001, p. 54).
No filme “The final cut”, um crítico e militante
contrário ao implante do chip é Fletcher (Jim Caviesel). Para ele o chip “destrói a
história”. Além do mais, acusa o editor de “transformar assassinos em santos” e
de reescrever o passado em “memórias agradáveis” através de seu trabalho. Este
mesmo risco corre o historiador no ato de seu ofício, pois ao definir o recorte
histórico para análise, ele pode atribuir a esse constructo elementos ou
interpretações mais comprometidas com a sua subjetividade.
Uma
atenção que o historiador deve-se ater, segundo Hobsbawm (2013, p. 13), é
“lembrar o que os outros esquecem”. Porém, neste ato de lembrar, produto da
escrita, entra em jogo a pessoa do próprio historiador, ele mesmo inserido num tempo e, portanto, não
isento de suas determinações, conceitos e preconceitos. Hobsbawm (2013, p. 15)
esclarece que “a principal tarefa do historiador não é julgar, mas compreender
[...] O que dificulta nossa compreensão, no entanto, não são apenas nossas
convicções apaixonadas, mas também a experiência histórica que as formou”. A
busca pela imparcialidade será sempre a tônica do trabalho historiográfico, no
entanto, essa imparcialidade precisa ser trabalhada, precisa estar aberta a
críticas. O trabalho histórico nunca é um trabalho terminado, esta sempre em
contínua reconstrução, o que é sempre um
desafio, que o historiador é convidado a
revisitar. “Por isso, há necessidade de reflexão teórica, não sistemática, não
dogmática, não totalitarista, mas problematizante, descrente, histórica”(REIS,
2010, p. 12).
O
historiador não fala sozinho, como nos lembra Certeau (1982, p.65). Segundo
ele, a história é a arte de encenação que compreende a
relação entre o lugar do discurso, os procedimentos de análise e a construção
de um texto. Portanto, a “combinação de um lugar social, de práticas
científicas e de uma escrita”. E toda essa operação se dá a partir de um corte,
que é a opção do historiador face a amplidão do seu objeto. As críticas de Fletcher
no
filme são importantes para que o historiador busque sempre um equilíbrio na
pesquisa, não esquecendo que o seu ponto de vista, como lembra Koselleck (2006,
p.162) também é “condicionado pelas circunstâncias”.
Aqui
adentramos no problema da memória, ou das memórias, como afirma Frago (apud
Castanho 2010, p. 56). Memórias no
plural porque individual e cultural (coletiva). Memórias que o historiador
participa, obviamente, e que definem no mais das vezes o campo historiográfico
ao qual o pesquisador se associa. Em última análise, aquilo que leva o historiador
a se interessar mais por um determinado campo de pesquisa do que por outro.
No
filme, ao rememorar o momento em que viu que o sangue era na verdade tinta,
elemento esquecido e só acessado por meio do chip de memória, Alan percebe que sua
história pessoal, sua identidade foi plasmada por um esquecimento, de modo que
um detalhe (o balde de tinta), teve papel fundamental na construção de sua
identidade.
Desta
mesma forma,
“Na
experiência vivida, a memória individual é formada pela coexistência, tensional
e nem sempre pacífica, de várias memórias (pessoais, familiares, grupais,
regionais, nacionais etc.) em permanente construção, devido à incessante
mudança do presente em passado e às alterações ocorridas no campo das
re-presentações (ou re-presentificações) do pretérito [...] Assim, contra a
tese bergsoniana da existência de uma
“memória pura”, os dados imediatos da consciência são tecidos por uma
pluralidade de memórias outras que coabitam na memória subjetiva cuja mediação
acaba por exemplificar o modo como aquelas são apropriadas”. [Catroga, 2015, p.
11]
Percebemos
assim, a importância de consideramos a inter-relação entre memória pessoal e
coletiva e como isto pode ter incidência no produto final do historiador. Nenhum
pesquisador experiente irá negligenciar que a amnésia, voluntária ou
involuntária, pode determinar, como diz Le Goff ( 2013, p. 389), “perturbações graves
da identidade coletiva” e, porque não, pessoal. Como na ficção onde o
esquecimento de um detalhe determinou a identidade de um personagem, assim
também, é o presente que se impõe ao passado, num processo de continua tensão,
“que vai urdindo as tonalidades – que podem chegar a patologia – de presença do
ausente”(CATROGA, 20015, p. 21).
Neste
sentido, Paul Ricouer no seu texto, “Memória, História e o Esquecimento” nos
ajuda a compreender esta relação sempre renovada, pela hermenêutica entre a memória,
como matriz da história, a
historiografia que produz seu caminho por meio dos testemunhos e
documentos, e do esquecimento como aquilo que limita a história e a memória. O
ato do lembrar fenomenológico, diz Reis
( 2010, p. 32) ao comentar a obra de Ricouer, é um ato “retrospectivo, reflexivo”.
Portanto, não é apenas uma saudade, ou um saudosismo, mas um exercício
consciente e racional. Porém, neste ato há uma vulnerabilidade que é o
esquecimento. Para Ricouer (2007, p.423) o esquecimento “continua a ser a
inquietante ameaça que se delineia no plano de fundo da fenomenologia da
memória e da epistemologia da história”.
Ricouer
destaca três tipos de esquecimento: o
esquecimento por apagamento de vestígios; o esquecimento de reserva e o
esquecimento manifesto. Há lapsos de memória (pessoal) que podem ser
recuperados mediante um retorno dirigido ao passado guardado por meio da
confrontação de diferentes perspectivas ( psicanálise, hipnose). Isso ajuda a analisar as possíveis deformações
que as narrativas podem trazer, uma vez que
“é impossível lembrar-se de tudo, é impossível narrar tudo”(RICOUER,
2007, p.455).
Uma
caraterística importante do historiador é o que Catroga designa como “ remembrancer”. O remembrancer era um
funcionário inglês da idade média “que tinha a odiosa tarefa de ir, de aldeia
em aldeia, e nas vésperas do vencimento dos impostos, lembrar às pessoas aquilo
que elas mais desejavam esquecer” (CATROGRA, 2015, p. 84). Pois bem, se o
esquecimento torna-se importante dentro da dinâmica histórica, para o bem ou
para o mal, o historiador tem a tarefa de lembrar que a “memória, tal como a historiografia,
é uma das expressões da condição histórica do homem” ( CATROGA, 2015, p. 85). E
como vimos no início, o esquecimento ( pessoal ou coletivo), natural ou
artificial (produzido) determina as identidades.
Nesta
interrelação entre memória e identidade, onde a primeira cria a segunda, o historiador
no seu oficio tem o poder da seleção por meio de sua organização. Ao
selecionar, recortar, o historiador faz a sua escolha, que não é isenta de seus
interesses. O que importa, no entanto, é o que Marc Bloch sinalizou: “Apenas
lhe pedimos que não se deixe hipnotizar por sua própria escolha a ponto de não
mais conceber que uma outra, outrora, tenha sido possível”(2001, p. 127). As
escolhas do historiador permanecem sempre uma escolha, nem melhor nem pior,
apenas uma escolha.
Considerações
finais
O
historiador também ele tem uma história, também ele é produto de uma realidade
e suas escolhas não são isentas, não são totalmente imparciais. Por isso a
importância de haver simultaneidade entre o fato histórico e o historiador,
aquilo que Hobsbawm (2013, posição 56) chamou de “distinção fundamental [...]
entre fato comprovável e ficção, entre declarações históricas baseadas em
evidências e sujeitas a evidenciação e aquelas que não o são”. Esse pode ser um dos critérios de avaliação,
senão o mais importante, com relação a objetividade histórica. Dessa maneira,
afastamo-nos da pessimismo cético que por vezes patrulha as análises
históricas, especialmente relacionadas as fontes, transformando-as em muros que
impedem o acesso ou, como os positivistas, como janelas escancaradas para o
passado. Ginzburg (apud, Costa, 2010, p. 81) será mais moderado ao dizer que
serão como espelhos deformantes.
As
relações entre memória e história, nem sempre pacíficas e sempre tensionadas
devido, ao que Catroga (2015, p. 11) chama de “permanente construção” do
presente em passado, muitas vezes altera as representações que fazemos. Joutardt ( p. 223) diz que a “memória sabe também transformar, consciente ou inconscientemente, o
passado em função do presente, apresentando a tendência particular de embelezar
este passado”. De fato, se a memória corre o risco de idealizar o passado, a
história, por sua conta, no seu discurso científico, pode fazer o trabalho de
aproximar o ideal e o real, ainda que este processo esteja sempre em
re-construção.
As relações entre memória e identidade, mediadas
pelo processo científico que faz o historiador no uso de seu oficio, precisam
sempre de um “esforço prévio de depuração conceitual” (CANDAU, 2014, p. 19),
para não simplesmente identificar uma com a outra, apesar de saber das profundas
imbricações que as elas possuem.
O ofício do historiador é um ofício a se fazer
continuamente, nunca terminado mas sempre em marcha como afirmava Bloch, tendo
em vista que a ciência histórica não é uma ciência exata como a matemática,
porque tem como objeto o ser humano.
Referências
Edson Claiton Guedes. Mestrando em História pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa/PR. Linha de pesquisa: Instituições e sujeitos,
saberes e práticas. Bolsista Capes.Orientador: Prof. Dr.
Edson Armando Silva.
BLOCH, M. A
apologia da história ou o oficio do historiador. Tradução de André Telles.
Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001.
Hobsbawm, E.
Sobre a história: ensaios. Tradução de Cid Knipel Moreira. São
Paulo: 2013. Edição Kindle.
___________:
Era dos extremos: O breve século XX
(1914-1991). Tradução Marcos Santa Rita. 2a Edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
CERTEAU,
M. Operação historiográfica. In: A
escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:
Forense universitária, 1982.
LE GOFF, J. : História
e Memória. Tradução de Bernardo Leitão [et. Al.]. 7a edição.
Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
CASTANHO, S. Teoria
da história e História da educação: por uma história cultural não
culturalista. Campinas: Editora Autores Associados, 2010.
REIS, J. C. O
desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
CATROGA, F. Memória,
história e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
RICOUER,
P. A história, a memória, o
esquecimento. Tradução: Alain François (coord.) Campinas:
Editora da Unicamp, 2007.
JOUTARD, P. Reconciliar História e
Memória?. Tradução de Afonso
Henriques Neto. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/numero01/. Acesso em: 26 de jan.2016.
CANDAU, J. Memória
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COSTA,
R. O ofício do Historiador. Disponível
em: http://www.ricardocosta.com/artigo/o-oficio-do-historiador. Acesso em: 23 de jan. 2016.
Sinopse
do Filme. Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-52423/. Acesso em: 18
de jan. 2016.
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